Nota Técnica Nº 04/2009
(Complementar à de nº 2/09)
i) Trata-se de levantamento de pacientes oriundos do Município de Araucária, enviados para atendimento no Hospital São Vicente, em Curitiba, no período de 29.10.2007 a 29.10.2008.
A origem de tal averiguação é ter aquela municipalidade avençado unilateralmente com a referida casa de saúde a atenção aos seus usuários.
Elaborou-se auditoria parcial, através do serviço próprio do Município de Curitiba, a qual revelou, no que mais interessa, a necessidade de "confrontar as diárias pagas pelo SUS Curitiba e as pagas pelo Município de Araucária, considerando que o Município de Curitiba não é parte no contrato entre o Hospital São Vicente e Araucária" (sic, fls.).
ii) Desde logo, vê-se que o "contrato" celebrado entre o hospital e o Município de Araucária, ainda que esteja formalmente adequado (o que há de ser verificado), ressente-se de dois vícios, desde já identificáveis.
O primeiro deles é a lesão ao princípio da direção única em cada esfera de governo.
Sobre o tema, são esclarecedoras as observações de Lenir Santos:
"A direção única em cada esfera de governo significa que o Sistema Único de Saúde – embora conceitualmente uno, porque informado pelos mesmos princípios e diretrizes na União, nos estados, no Distrito Federal e nos municípios – deve ser operado, em cada uma dessas esferas de governo, segundo os interesses e peculiaridades de cada uma das entidades estatais, e nos termos da respectiva autonomia política e administrativa e da competência que a cada uma é atribuída pela Constituição da República, Lei Orgânica da Saúde e legislação suplementar federal, estadual, distrital ou municipal, conforme o caso.
Direção única é uma conseqüência da autonomia política e da competência legal, exercida em conformidade com aqueles princípios e diretrizes informadores do sistema.
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A direção única não visa apenas coibir que na mesma esfera de governo haja o compartilhamento da direção de serviços de saúde com outros órgãos do mesmo governo. Ela também tem expressão territorial, ou seja, visa impedir que no mesmo território haja vários dirigentes da saúde, de diversas esferas de governo, executando serviços de forma desarticulada, desordenada, sem a necessária integração de que falam o artigo 198 da Constituição (rede regionalizada e hierarquizada) e o artigo 7, XI, da LOS.
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O princípio que deve ser perseguido é o da unificação das ações e serviços de saúde de todos os entes governamentais em redes de serviços, sendo o comando político, em cada esfera de governo, de um único dirigente. Na saúde, os pactos firmados entre seus dirigentes, consubstanciados em instrumento jurídico competente, devem ser a base da organização regionalizada e referenciada do sistema e orientar, também, a elaboração do plano de saúde" (Sistema Único de Saúde: Comentários a Lei Orgânica da Saúde (Leis 8.080/90 e 8.142/90) / Guido Ivan de Carvalho e Lenir Santos. – 4ª ed. rev. e atual. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2006. pág. 87-89).
Ora, o caso vertente trata exatamente desta hipótese. A ingerência de um ente federativo (Araucária) no âmbito de atuação de outro (Curitiba), por meio da "contratação" em causa.
Com a prática, que ora está evidenciada, há grande risco de se comprometer a organização regional do Sistema Único de Saúde, produzindo efeitos graves, não apenas formais. Por exemplo, utilizar-se (Araucária) de leitos originalmente destinados a outros usuários inseridos no âmbito regulação da pactuação inter-gestores, eventualmente em estado de mais gravidade. Ademais, por qual tabela de remuneração estaria o município contratante pagando os serviços prestados ? É idêntico o critério para atendimento de pacientes das duas origens ?
Deveria, em princípio, o administrador de Araucária ter se valido dos fluxos próprios, pactuados na Comissão Intergestores Bipartite e não criar um canal privativo de atendimento externo ao seu perímetro de gestão.
Recorde-se que existe uma rede de atenção hospitalar que já está estabelecida em todo o Paraná, certamente abrangendo os munícipes de Araucária. A regra para todos os municípios, pois, é o encaminhamento dos seus pacientes para os serviços hospitalares fora de seu território, pela inexistência lá de determinado tipo de atenção, obedecido o sistema de referência e contra-referência.
Apurada a distância de Araucária à Curitiba, inferior ao mínimo previsto, verifica-se não incidirem as disposições da Portaria nº 55/99, relativas ao tratamento fora do domicílio (TFD), retificando-se, neste aspecto, os termos da Nota Técnica nº 02/2009.
Vale lembrar que, para o município, a opção de "contratar" diretamente um serviço de saúde existente para além de suas divisas, não tem qualquer previsão na regulamentação administrativa ordinária do SUS. Aliás, como se está a ver no caso concreto, desorganiza o atendimento coletivo e fragiliza seu controle.
Rege a espécie, com relação à gestão dos prestadores de serviço, a normatização estabelecida na NOAS SUS 01/2002, que está mantida. As referências na NOAS SUS 01/2002 às condições de gestão de municípios ficam substituídas pelas situações pactuadas no respectivo Termo de Compromisso de Gestão, conforme estabeleceu a PT GM nº 399/06.
Emergem, ainda, das investigações até aqui procedidas, alguns questionamentos essenciais: pertencia à competência de gestão do Município de Araucária elaborar este contrato, ou seja, assumir obrigação de financiamento que, originalmente, pertence à União (AIHs) ? Os serviços de atenção básica (AB), integralmente a seu cargo, estavam satisfatórios para a população, de molde a se despender recursos extras com atenção terciária (hospitalar) ? Semelhante modalidade de atenção à saúde (em outro município) tinha previsão no Plano de Saúde de Araucária ? Os recursos para custeá-la saíram do Fundo Municipal de Saúde ? Se positiva a resposta, foram extraídos da rubrica relativa ao custeio da AB ?
Em face destas observações preliminares, portanto, remeta-se a presente documentação à Promotoria de Proteção à Saúde Pública de Araucária, para os fins propostos na auditoria realizada em Curitiba, bem
como para os esclarecimentos, por parte da secretaria de saúde local, acerca do quanto foi indagado acima.
A presente Nota Técnica é complementar à de nº 02/2009.
Encaminhe-se cópia ao CAO das Promotorias de Justiça de Proteção ao Patrimônio Público e Ordem Tributária (ref. Ofício nº 33/09-CAOPSAU; PAV nº 2/09).
Curitiba, 31 de março de 2009.
Marco Antonio Teixeira
Procurador de Justiça