Nota Técnica Nº 01/2012
Assunto: demandas em que o Estado do Paraná objetiva se exonerar do fornecimento de medicamentos no âmbito do Sistema Único de Saúde; pretendida prevalência absoluta dos Protocolos Clínicos (PCDT) como motivo de não concessão; nova previsão de AF na LF 8080/90 e Decreto 7.508/11; redução por via administrativa da diretriz do atendimento integral (art. 198, inciso II, CF); inviabilidade.
Recentemente, em algumas defesas ocorridas em procedimentos ministeriais ou em ações judiciais, notadamente produzidas pelo Estado, tem-se sustentado a tese da impossibilidade do fornecimento de certos fármacos por:
i) não estarem padronizados, não possuírem PCDT e não integrarem a RENAME,
ii) falecer ao ente demandado poderes para alterar Protocolo Clínico (menção ao art. 19-Q da LF 8080/90 – "a incorporação, a exclusão ou a alteração pelo SUS de novos medicamentos, produtos e procedimentos, bem como a constituição ou a alteração de protocolo clínico ou de diretriz terapêutica, são atribuições do MS, assessorado pela CONITEC"), e
iii) indução de remessa da causa à União (ou Justiça Federal), com supostas atribuições para tanto (cf. art. 26 do Dec 7.508/11 – "O MS é o órgão competente para dispor sobre a RENAME e os PCDT em âmbito nacional, observadas as diretrizes pactuadas pela CIT")
O posicionamento relatado, embora não seja inédito, assume maior consistência jurídica a partir do advento da LF n° 12.401/11, que modificou a LF 8080/90, e do Decreto 7.508/11, que regulamentou a penúltima parcialmente, tratando de pontos como incorporação tecnológica no SUS, padrão de integralidade em assistência farmacêutica e a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME).
Importa recordar, inicialmente, que Protocolo Clínico e Diretriz Terapêutica (PCDT) constitui documento que estabelece critérios para o diagnóstico da doença ou do agravo à saúde; o tratamento preconizado, com os medicamentos e demais produtos apropriados, quando couber; as posologias recomendadas; os mecanismos de controle clínico; e o acompanhamento e a verificação dos resultados terapêuticos, a serem seguidos pelos gestores do SUS (cf. art. 19-N, inciso II, LF 8080).
Posta a questão como foi pelo Estado, é possível argumentar, em tese, ressalvadas sempre as especificidades de cada caso concreto, que:
1. Os Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) são elementos organizadores da prestação farmacêutica, e não limitadores, da assistência à saúde neste plano. Na medida em que se alega que apenas o que contém os PCDT, frequentemente desatualizados, pode ser oferecido pelo SUS ao usuário, está-se claramente conferindo valor inconstitucional à solução dada, visto que o dizer do art. 198, inciso III, da CF, quando cuida de atendimento integral, o faz sem essa ou qualquer limitação administrativa. A letra constitucional é abrangente e compreensiva, não podendo disposição de escalão inferior (ou sua exegese) de modo nenhum reduzir-lhe o perímetro de incidência . Sequer o art. 198 da CF fez constar a expressão "nos termos da lei", ou equivalente, o que reflete ainda mais a autonomia e intangibilidade do valor nele inserido, de forma que caberia à lei ordinária, ou seu regulamento, unicamente dispor sobre os PCDT como elementos organizacionais do SUS, seus fluxos e competências, e não erigir indevidos impedimentos da atenção terapêutica solicitada.
Ainda, porém, que assim não se compreendesse, melhor sorte não colheria a tese demissionária de responsabilidade estatal.
É que caberia afirmar, na espécie, a interpretação dos dispositivos legais (art. 19-Q da LF 8080 e art. 26 do Dec 7.508) conforme a Constituição Federal, eis que o propósito do raciocínio do gestor estadual, dito no início, parece estar voltado para o lado exatamente oposto, isto é, gerar entendimento hermenêutico contraditório aos valores e princípios que regem a Carta Federal, particularmente restringindo a extensão e aplicabilidade da integralidade nas ações e serviços de saúde.
2. A matéria também remete à incidência da Teoria da Proibição do Retrocesso Social, largamente utilizada em países como Alemanha, Itália e Portugal, como modo de proteção aos direitos sociais e suas prestações.
A sua previsão doutrinária está apegada aos direitos derivados a prestações (assistência social, subsídio de desemprego, etc.), que justificam o direito de judicialmente ser reclamada a manutenção do nível de realização e de se proibir qualquer tentativa de retrocesso social.
Outorgar-se ao gestor federal suposta exclusividade em face dos PCDT configura claro retrocesso ao regime de atenção à saúde que até então existia, no qual Estados e municípios elaboravam e alteravam seus próprios Protocolos Clínicos motivados pelas necessidades derivadas do respectivo perfil epidemiológico e peculiar de cada espaço territorial, assim melhor atendendo suas populações. Com esse proceder, cumpria-se também, simultaneamente, a orientação constitucional sobre regionalização (art. 198, caput, CF). Nessa linha de agir, aliás, pode-se citar o Estado do Paraná e o município de Curitiba dentre aqueles que exercitaram tal prática ao longo do tempo, com bons resultados.
Não é possível, pois, admitir a interpretação tencionada, que busca demitir-se de responsabilidades em face de usuários, muitas vezes extremamente pobres, que verão concretamente reduzidas suas possibilidades de atendimento, que estariam concentradas apenas no gestor federal. Reduzem-se indevidamente, por essa via, as prestações devidas, com evidente lesão material ao direito social e individual à saúde (arts. 6° e 196 da CF, respectivamente), além de abdicar o ente federativo de fração de sua autonomia constitucional em favor da União. Reconhece-se cassada, como efeito de tal inteligência, parcela de poder e independência na gestão de seus interesses que a CF concedeu a Estados e municípios.
3. PCDTs, sacralizados juridicamente como argumento válido para negar o fornecimento de fármacos pleiteados neles não inseridos, ofende o princípio da descentralização político-administrativa do SUS, prevista na LF nº 8.080/90, art. 7º, inc. IX.
É que, ao se entender que os Protocolos são instrumentos de exclusiva atribuição da União, tem-se que descentralização nenhuma houve, muito pelo contrário. Ter-se-ia concentrado no gestor federal o poder de dispor a respeito, subtraindo-o dos demais entes federativos. Houve centralização.
Isso sem olvidar que semelhante raciocínio colide frontalmente com uma das idéias mais caras à recente reforma da legislação sanitária, que é a da articulação interfederativa (v. sobre a LF 12.466/11 e o Dec. 7.508/11). Na hipótese, articulação não existiria, mas sim verdadeira subordinação interfederativa.
4. Convém ressaltar que a LF 8080 e o Decreto 7.508, ao tratarem dos Protocolos Clínicos, reportando-se ao gestor federal, não utilizam o advérbio "exclusivamente", ou equivalente, para representar que o instituto não poderá continuar a ser produzido pelos Estados e municípios como até então. Não será despropositado, portanto, o entendimento de que a União detém sim atribuição administrativa e legal para dispor sobre protocolos, marcadamente no plano organizativo geral, que é sua seara natural de intervenção, ressalvados aos Estados e Municípios a possibilidade de fazê-lo no âmbito das especificidades e necessidades de saúde locais.
5. Não é aceitável, de outra parte, afastar-se de responsabilidade, em tese, o Estado pelo atendimento à demanda posta, terceirizando-a para a União, porque incumbem-lhe as obrigações comuns derivadas da solidariedade passiva na gestão do SUS (art. 23, inciso II, da CF), de há muito amplamente reconhecidas pela jurisprudência brasileira, podendo valer-se, se for o caso, do quanto estatuído no art. 35, inciso VII, da LF 8080 ("ressarcimento do atendimento a serviços prestados para outras esferas de governo").
6. A sustentar a inaplicabilidade da tese exonerativa em exame é de se sublinhar que o Decreto nº 7.508 fixa, no seu art. 27, que poderão os demais entes federativos "adotar relações específicas e complementares de medicamentos, em consonância com a RENAME, respeitadas as responsabilidades dos entes pelo financiamento de medicamentos, de acordo com o pactuado nas Comissões Intergestores". Ou seja, se não houver previsão nos PCDT, a assistência farmacêutica acabará por ser objeto de relação específica complementar de medicamentos, verdadeiro poder-dever a ser adimplido por razão de saúde pública, argumento que retrata irretorquivelmente o vínculo obrigacional público incidente do Estado e/ou do município na espécie.
7. De atentar-se para a norma inserta no parágrafo único do 28 do Decreto nº 7.508/11, a sustentar que os "entes federativos poderão ampliar o acesso do usuário à assistência farmacêutica, desde que questões de saúde pública o justifiquem", situação (tal como a do articulado anterior) que confere ao gestor estadual plenas responsabilidades para entrega de drogas não previstas nos Protocolos, desde que devidamente prescritas por médico vinculado ao SUS, registradas na ANVISA e respeitadas as demais exigências legais para tanto. Sabe-se, a propósito que, em geral, procedimentos administrativos ou ACPs propostas pelo MP tendem a denotar exatamente determinada insuficiência de assistência farmacêutica no SUS, caracterizando propriamente "questão de saúde pública", que deve ser solvida positivamente pela Administração Pública.
É possível, pois, ao Estado ou ao município diretamente ampliar a atenção farmacêutica na forma previamente prescrita por profissional preposto do Sistema.
8. A pretendida busca da gestão estadual do SUS de se furtar a dispensação de medicamentos que não estejam contemplados nos PCDTs ainda fere frontalmente a regra imperativa do caput do art. 19-P, da Lei nº 8080, segundo a qual "Na falta de protocolo clínico ou de diretriz terapêutica, a dispensação será realizada" com base nas relações de medicamentos instituídas pelo gestor federal, de cada Estado ou Município. Fosse a intenção do legislador desobrigar o SUS em tais casos, adotaria a expressão "poderá". Mas não o fez!
9. Convenha-se que o processo de planejamento, e não há como negar que os PCDT o integram fortemente pela sua natureza mesma, pressupõe seja ele ascendente e integrado, do nível local até o federal, ouvidos os respectivos Conselhos de Saúde, na fala do art. 15, do Decreto 7.508.
Ora, quando se pretende a prevalência exclusiva dos PCDT, como atributo apenas da União, tem-se exatamente o oposto, isto é, o processo de planejamento, no que toca aos Protocolos, torna-se descendente e não integrado por municípios e Estados, sem audição dos Conselhos de Saúde. E se assim é, resta afetada a sua validade, por deficiência formal e material de conformação.
10. A negar as razões para não entregar remédios a usuários que deles carecem, observa-se a incidência do Código de Ética Médica (Res. CFM 1931/09), que detém vigor de lei ordinária, segundo já reconhecido pelo Superior Tribunal de Justiça. Em seu cap. V, art. 32, estabeleceu ser vedado ao médico [na relação com pacientes e familiares], "deixar de usar todos os meios disponíveis de diagnóstico e tratamento, cientificamente reconhecidos e a seu alcance em favor do paciente".
Com efeito, como limitar, ética e legalmente, o dever de cuidado do médico em relação ao usuário do SUS que assiste, escudando-se em previsões nem sempre atuais cientificamente dos PCDTs ou que não correspondem à situação que se apresenta ?
Impor responder eticamente o profissional, perante seu órgão censor, pela prática consistente em obedecer a elenco terapêutico sabidamente defasado para o caso concreto, que impunha conduta prescritiva diversa, cientificamente embasada, submetendo seu paciente, dessa forma, a risco inaceitável.
São práticas que não é dado supor tenham inspirado o legislador.
Ao interpretar os textos legais aludidos, parece o Poder Público questionado buscar evitar sua responsabilidade constitucional e legal, eliminar dispêndios absolutamente necessários para preservar interesses sociais e individuais indisponíveis (justamente aqueles que dão sentido primário ao contrato social e à existência mesma do Estado).
Nega-se apenas pelo simples prisma formal e distorcido da conveniência, culminando com isso, no final dessa triste linha, ipso facto, por renegar sua própria ratio ontológica.
Curitiba, 28 de fevereiro de 2012.
FERNANDA NAGL GARCEZ
Promotora de Justiça
JULIANA ANDRADE DA CUNHA
Promotora de Justiça
MARCO ANTONIO TEIXEIRA
Procurador de Justiça