Nota Técnica Nº 01/2009
Procedimento de Acompanhamento e Verificação nº 225/07
(ref. Oficio nº 19/2007 – Promotoria de Justiça de Coronel Vivida).
O presente caderno ministerial é constituído de indagações da ilustre Promotora de Justiça em atuação na Comarca de Coronel Vivida, doutora Ivana Ostapiv Rigailo, a partir de critérios estabelecidos pelo município, em reunião conjunta com o Conselho Municipal de Assistência Social, Conselho Municipal de Saúde e Secretaria Municipal de Saúde dentre outros, e diz respeito ao fornecimento de medicamentos/insumos aos residentes naquele município, destacadamente no que se refere à obrigatoriedade de a prescrição médica ser proveniente de médico do SUS, a renda per capita do usuário do sistema de saúde ser de até meio salário mínimo para o recebimento dos fármacos sem ônus, e à possibilidade de a Secretaria de Saúde local contribuir com o paciente para que se alcance a renda per capita de um salário mínimo.
Salienta-se, ainda, a necessidade de realização de estudo social por Assistente Social em todos os casos acima relatados e se questiona se, no fornecimento de insumos a idosos, crianças e adolescentes, a par das disposições legais constantes das Leis Federais nº 10.741/03 e 8.069/90, existe a possibilidade de aplicação dos critérios acima elencados.
É o relato.
1) O aspecto inicial a ser abordado diz respeito à legalidade de se condicionar, por critérios financeiros de renda familiar ou per capita, o fornecimento de fármacos à população usuária do SUS de Coronel Vivida.
Segundo se definiu na Ata nº 8/2007, limitou-se o fornecimento de insumos aos usuários em virtude dos seguintes critérios: àqueles com renda percapita menor ou igual a meio salário mínimo seriam fornecidos os medicamentos; nos casos de renda percapita superior a meio salário mínimo e cujos medicamentos sejam de valor elevado, a Secretaria Municipal de Saúde contribuiria com o paciente, a fim de que atingisse a renda percapita de um salário mínimo.
Ora, a Constituição Federal dispõe em seu artigo 5º, "que todos os cidadãos brasileiros são iguais perante a lei com direito à vida, à liberdade, à segurança...".
Logo a seguir, no artigo 6º, é colocada a saúde como direito social.
Mais à frente, na Seção II, da Seguridade Social, o art. 196, CF, declara que "saúde é direito de todos e dever do Estado", estando o Poder Público lato sensu, obrigado a 1) executar políticas econômicas e sociais e 2) de garantir o acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde.
Tal disposição também está estampada no artigo 2º, §1º, da Lei Federal nº 8.080/90:
"Art. 2º - A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício.
§ 1º - O dever do Estado de garantir a saúde consiste na reformulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação".
O princípio fundante da "universalidade" está presente, ainda, na Lei Federal nº 8.080/90, em seu artigo 7º, que define como um dos princípios do SUS "a universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência".
Neste quadro, compreende-se que não há observância desse princípio quando ocorre a priorização (ou negativa) de atendimento em razão da diferença de capacidade econômica, condição social, idade (aí incluídos os casos das Leis Federais nº 10.741/03 e 8.069/90), sexo, ou qualquer outro critério discriminador.
Ratificador deste entendimento é o inciso IV, do art. 7º, da Lei nº 8.080/90:
Art. 7º As ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou conveniados que integram o Sistema Único de Saúde - SUS são desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no artigo 198 da Constituição Federal, obedecendo ainda aos seguintes princípios:
IV - igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie;
Portanto, quando o município de Coronel Vivida estipula os critérios antes referidos para o fornecimento de medicamentos e outros insumos necessários aos usuários de saúde, está violando expressamente não só os dispositivos legais acima citados, mas está ferindo especificamente princípio constitucional.
No tocante à complementação de renda, por parte da Secretaria Municipal de Saúde, a fim de que a família e/ou o paciente atinjam o valor de um salário mínimo (renda per capita), há que se ressaltar que não existe previsão que possibilite e legalize tal prática em matéria de saúde.
Não há racionalidade jurídica que autorize o Município a fornecer verbas para a complementação familiar, ao arrepio da lei, a fim de que os usuários do SUS possam ser beneficiados (ou possam adquirir) os insumos que já deveriam obrigatoriamente ser fornecidos gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (art.6º, I, "d", Lei Federal nº 8080/90)
Por outro lado, a prática pode até, em tese, constituir o crime previsto no artigo 52, da Lei Federal nº 8.080/90:
Art. 52. Sem prejuízo de outras sanções cabíveis, constitui crime de emprego irregular de verbas ou rendas públicas (Código Penal, art. 315) a utilização de recursos financeiros do Sistema Único de Saúde (SUS) em finalidades diversas das previstas nesta lei.
Sob o presente enfoque, pois, a proposta inserta na ata em análise é rigorosamente ilegal. Como também o é, e nela consta, encaminhar o usuário para o Departamento de Promoção Humana, em casos que demandem uma atenção de maior valor, eis que não se está a tratar de hipótese de assistência social, cujos fundamentos estão inscritos no art. 203, da Constituição Federal.
2) Outro ponto é quanto à prescrição médica ser elaborada exclusivamente por médico conveniado ao SUS, a fim de que o paciente seja beneficiado pelos fármacos de maior custo dispensados pela Secretaria Municipal de Saúde.
Aqui, diferenciaram-se os critérios para fornecimento dos fármacos, estipulando que, caso o mesmo constasse da listagem da farmácia básica e estivesse à disposição do paciente no Município, independeria a origem da prescrição (SUS, "convênio" ou particular). Já nos casos em que houvesse sido recomendada uma droga de maior valor, não disponível ao usuário na farmácia básica do município, a receita deveria ser obrigatoriamente assinada por médico ligado ao SUS.
Tal diferenciação, entretanto, não pode ser realizada desta forma. A lógica do Sistema é de que toda receita seja emitida por profissional do SUS, independente de seu valor comercial, a não ser em hipóteses especialíssimas, receituário privado não poderá ser dispensado pelo SUS.
Conforme salientado no parecer técnico de fls. 11, "...qualquer cidadão independente de sua condição social e financeira tem o direito de usar o sistema para tratamento de saúde. Não encontra respaldo legal a decisão do município em tela, sendo apenas coerente que se exija a prescrição por médico do SUS, e que em outros casos se ofereça a possibilidade de consulta médica pelo SUS para referendar ou não a prescrição que o usuário apresentar".
O que se poderia acrescentar como útil na espécie é o município adotar o protocolo de organizar-se para que os usuários tenham a oportunidade de serem atendidos por médicos do SUS e terem suas receitas referendadas por tais profissionais.
De fato, explica Lenir Santos no texto SUS: Contornos jurídicos da integralidade da atenção à saúde : "a universalidade assegura o acesso de todos à saúde, mas a pessoa precisa querer adentrar ao SUS, uma vez que a assistência integral somente é garantida àqueles que estão no SUS. Quem optou pelo sistema privado não pode pleitear parcela da assistência pública, porque ela pressupõe a integralidade da atenção, e a integralidade da atenção, por sua vez, pressupõe que o paciente está sob terapêutica pública, escolheu o sistema público".
Assim, é devido que o custeio de medicamentos pelo gestor local tenha a sua receita originada dentro do Sistema.
Vale recordar aqui como está previsto o financiamento da assistência farmacêutica .
Com o advento da Portaria Ministerial 399/06, que estabeleceu o Pacto de Gestão no SUS, tornou-se mais clara ainda a responsabilidade de cada ente federado na execução dos serviços e ações de saúde.
No tocante à assistência farmacêutica, definiu o Pacto que esta será financiada pelos três gestores do SUS, devendo agregar a aquisição de medicamentos e insumos e a organização das ações de assistência farmacêutica necessárias, de acordo com a organização de serviços de saúde. Sem olvidar que á direção municipal do SUS compete executar os serviços de saúde pública (art. 18, I, Lei Federal nº 8080/90).
Estipulou-se que o bloco de financiamento da Assistência Farmacêutica se organiza em três componentes: Básico, Estratégico e Medicamentos de Dispensação Excepcional.
Note o que dispõe o Pacto sobre a assistência básica, que é de responsabilidade do Município de Coronel Vivida:
"- promover a eqüidade na atenção à saúde, considerando as diferenças individuais e de grupos populacionais, por meio da adequação da oferta às necessidades como princípio de justiça social, e ampliação do acesso de populações em situação de desigualdade, respeitadas as diversidades locais;
- assumir a gestão e executar as ações de atenção básica, incluindo as ações de promoção e proteção, no seu território;
- assumir integralmente a gerência de toda a rede pública de serviços de atenção básica, englobando as unidades próprias e as transferidas pelo estado ou pela união;
- organizar o acesso a serviços de saúde resolutivos e de qualidade na atenção básica, viabilizando o planejamento, a programação pactuada e integrada da atenção à saúde e a atenção à saúde no seu território, explicitando a responsabilidade, o compromisso e o vínculo do serviço e equipe de saúde com a população do seu território, desenhando a rede de atenção e promovendo a humanização do atendimento;
- organizar e pactuar o acesso a ações e serviços de atenção especializada a partir das necessidades da atenção básica, configurando a rede de atenção, por meio dos processos de integração e articulação dos serviços de atenção básica com os demais níveis do sistema, com base no processo da programação pactuada e integrada da atenção à saúde;
- pactuar e fazer o acompanhamento da referência da atenção que ocorre fora do seu território, em cooperação com o estado, Distrito Federal e com os demais municípios envolvidos no âmbito regional e estadual, conforme a programação pactuada e integrada da atenção à saúde;
- garantir estas referências de acordo com a programação pactuada e integrada da atenção à saúde, quando dispõe de serviços de referência intermunicipal;
- garantir a estrutura física necessária para a realização das ações de atenção básica, de acordo com as normas técnicas vigentes;
- promover a estruturação da assistência farmacêutica e garantir, em conjunto com as demais esferas de governo, o acesso da população aos medicamentos cuja dispensação esteja sob sua responsabilidade, promovendo seu uso racional, observadas as normas vigentes e pactuações estabelecidas;
Por outro lado, o componente "Medicamentos de Dispensação Excepcional", cuja responsabilidade pelo fornecimento é do Estado do Paraná, consiste em financiamento para aquisição e distribuição de tais insumos, para tratamento de patologias que compõem o Grupo 36 – Medicamentos da Tabela Descritiva do SIA/SUS.
Se o município se propõe, como foi visto, a custear os medicamentos até para aqueles que não ingressaram no SUS , faz supor ilusória abundância de recursos públicos. Não poderá, no entanto, fazê-lo à custa de contingenciar ou suspender outro serviços, estes sim, de sua alçada específica na atenção básica.
A oferta de os fármacos excepcionais não cabe, por força do instrumento legal ora comentado, ao Município de Coronel Vivida, embora possa ele ser demandado a respeito judicialmente, em caráter excepcional, em face da solidariedade passiva que se estabelece no que toca à responsabilização geral dos entes federativos por ações e serviços de saúde.
3) Ratifique-se, em função do quanto exposto, que é desnecessária qualquer ingerência dos agentes do Serviço Social do Município no sentido de averiguar as condições financeiras dos usuários do sistema de saúde em Coronel Vivida, como pressuposto de permitir-lhes aceder ou não aos serviços públicos de saúde.
4) Cumprida a solicitação de origem, retornem os autos à Promotoria de Justiça de Coronel Vivida, com recomendação de, se adotados os parâmetros ora enunciados, seja deles dada ciência a todas as entidades e órgãos públicos mencionados na ata constante às fls. 4 deste caderno.
Curitiba, 26 de janeiro de 2009.
MARCO ANTONIO TEIXEIRA
Procurador de Justiça