A linguagem do foro
14/04/2021 | Por Rui Cavallin Pinto
Para os da minha geração, Rui Barbosa foi orgulho nacional e o condestável da justiça. Ninguém mais bem dotado que ele no domínio da palavra e das letras, nem que soubesse usá-las com maior competência e altitude de pensamento. Hoje, porém, já não se pensa assim. Suas longas orações e os maciços arrazoados já não são mais recomendados aos que se iniciam no pretório. Essa, pelo menos, a lição passada por um Eliézer Rosa, para quem, a despeito da admiração pelo genial baiano, o melhor é que os noviços se espelhem em exemplos mais recentes, “os do nosso tempo”, como diz. Realmente, a linguagem do foro mudou muito. Com certeza para poder acompanhar os padrões atuais de vida e interesses de uma sociedade que, numa simplificação de conceitos, caracteriza-se por sua complexidade maior e um processo de massificação e atendimento de uma demanda cada vez maior e mais urgente. E assim ocorre na Justiça, onde a medida do tempo é tratada com avareza, repudiando os excessos e rituais supérfluos, que só servem para procrastinar a prestação jurisdicional. Ora, já não se imagina que, nos dias de hoje, um juiz, com uma volumosa carga de processos no aguardo de sua decisão, disponha-se a devotar a atenção que merece o arrazoado de um Rui Barbosa à antique1, que, só para confutar as preliminares da União, no famoso processo do “Acre Setentrional”, consumiu 400 páginas, seguidas de outras 601 dedicadas ao mérito. E foram todas manuscritas!
Hoje, pelo contrário, o estilo do foro é claro e conciso. Ao invés dos longos períodos de orações subordinadas, as frases são agora curtas e desprovidas de maiores ornamentos e ostentações eruditas. O estilo é cool2 e o pedido nítido e objetivo, favorecendo o conhecimento do fato e justificando a necessidade da tutela pretendida.
Nesse sentido, as inúmeras recomendações, como as de Hugo Wast, de que, “cuando uno se encarniza en obtener efectos verbales, en realizar hallazgos de frases, muchas veces se desvia del principal y se pierde em sua propia verba3”.
Atenha-se, de um lado, o postulante à regra romana do jura novit curia4 e tenha em conta o adágio dat mihi factum dabo tibi jus5. Isso quanto o que antigamente se denominava artigo petitório, posto que, em relação à postulação lato sensu6, atente o pleiteante que o juiz já não dispõe, no cotidiano do fórum, do vagar necessário e do antigo enlevo literário para compartilhar da graforréia de uns tantos verbomaníacos que se comprazem em montar quebra-cabeças de palavras de uso raro ou fora de uso e sonoridades hoje estranhas, cuja pompa aparente só disfarça um “suposto saber jurídico”, no dizer do professor Ronaldo Caldeira Xavier.
E assim sendo, quem, à primeira leitura, é capaz de compreender o trecho seguinte retirado de autos verdadeiros?
Peça igualmente abstrusa (ou absconsa?) foi a que produziu o promotor de Frugal, Minas Gerais, conforme destaque que lhe deu Walter Ceneviva na imprensa paulista. Pelo visto, tratava-se de pedido de alvará, depois convertido em ação de segurança, sobre cuja pretensão assim se pronunciou o excêntrico custos legis: "Por comissão sua obstância teve desarrimo, quer na obsecratura prima, quer nas reimprecaturas. Está hausto o veio admnistratura". Na continuidade acentua: "Afigura-se de lidimidade a sua vindicância, e, despiciendário estratifica-se o atagantar com que atafulhe o retruque, visto que a hipótese não permite conchegue ao reguingue do coator". Finalmente: "Tudo zarpa de um escambo romaniesco... uma vez que é esgarrado a qualquer preceito". E arremata: "Sendo enleio de racionais, a refusão eiva-se de veleidade, importando concessório da segurança".
Ora… ora, toda essa algaravia nos traz à lembrança a observação colhida de Antônio Sales, de que escrever hoje em dia à moda de um padre Vieira, Bernardes e outros, é o mesmo que sair à rua vestido de gibão, calções e peúgas, que era como se vestiam os daqueles antanhos.
Não esquecer, entretanto, que a linguagem forense não é a mesma linguagem literária. Embora com o mesmo destino, a do foro tem propósitos próprios, entre outros os de expor e convencer. E é aí que a palavra tem seu papel principal. Então, nesse plano que a simplicidade é estimada como primeiro atributo do persuasor. A lição é de Marques de Oliveira, lembrando que Pitho, a deusa grega da persuasão, era representada pela imagem de uma linda mulher, mas vestida modestamente, como convém, embora trazendo as vestes bordejadas de rendas de ouro.
Para concluir, é de lembrar a lição de Vieira dirigida aos pregadores de que o estilo dos sermões deve ser sobretudo fácil e natural. Assim como as estrelas do céu, “que são muito distintas e muito claras”. Enfim, “o estilo pode ser muito claro e muito alto; tão claro que entendam os que não sabem. E tão alto que tenham muito que entender nele os que sabem”.
Notas do Memorial
1. Antigo, velho, clássico.
2. Gíria em inglês utilizada para definir uma pessoa "descolada", tranquila.
3. "Quando alguém se enfurece para obter efeitos verbais, para encontrar frases, muitas vezes se desvia do principal e se perde em seu próprio verbo" – frase do novelista argentino Gustavo Adolfo Martínez Zuviría, mais conhecido pelo pseudônimo Hugo Wast.
4. Expressão em latim de uma máxima romana: o tribunal conhece as leis.
5. Expressão em latim: me dá os fatos e eu te darei o Direito.
6. Expressão em latim: em sentido amplo.