Seu sucesso é a maior homenagem

08/02/2013 | Por Rui Cavallin Pinto

Aruanã Antonio dos Passos foi estagiário do Memorial do Ministério Público do Paraná. Dividia seu tempo conosco e como acadêmico de História da Universidade Federal do Paraná, onde se graduou e veio a completar sua formação de Mestrado. Hoje é doutorando em História na Universidade Federal de Goiás, onde exerce igualmente a docência do Curso de História e a liderança do grupo de pesquisa de Teoria da História e Historiografia.

Embora ainda muito jovem, já publicou “Debaixo das Penas da Lei, Justiça e Violência no Sudoeste do Paraná” – sua monografia de graduação – e agora editou mais “Leviatã no Sertão – Crime, Justiça e Violência no Interior do Paraná”, edição da Juruá, com cujo exemplar brindou nosso Memorial e homenageou os membros do seu tempo, Liana Overcenko (in memoriam), Nilton Carias de Oliveira e Rui Cavallin Pinto. Embora retratando uma história recente e ainda pouco contextualizada, o sudoeste paranaense foi palco de grave confronto com a Argentina, que criou fumaças de guerra (Questão das Missões); foi objeto de acirrada disputa judicial com Santa Catarina e sua herança perversa (Contestado), como ainda serviu de cena para a revolta agrária dos posseiros de Pato Branco e vizinhança, contra a capitalização da terra (1957).

Porém, o objeto do seu trabalho foi outro (last but not least1), centrado numa análise microssociológica da violência e da criminalidade no sertão sudoestino, durante os anos de 1910 a 1940. Seguindo a tendência penal atual voltada aos chamados “foras da lei” ou “excluídos da história” o jovem historiador social se serve da base documental de 38 processos-crime promovidos na comarca de Clevelândia contra pobres e médios proprietários, que são o quanto então representava a marginalidade ordinária da região, envolvida em brigas de bar, assassinato do vizinho, desordem, embriaguez, roubo, estupro. Roubo teve um só: o de um porco, na fazenda Santa Teola (1913) – em que os autores foram surpreendidos no próprio local, “cozinhando os pedaços do animal”. Sua estatística predominante é a de homicídios com revolver e agressão com facão ou punhal, e crimes de honra. Porém, 97% deles envolvem relações de ordem privada, e nenhum deles fere a grande propriedade ou os interesses econômicos e políticos dos grandes fazendeiros.

O mito que o trabalho quer também ajudar a desfazer é o do vazio demográfico do Oeste paranaense, com exclusão dos naturais da terra e da presença, embora incipiente, do caboclo posseiro, de origem luso-brasileira, ainda anterior às migrações. Outro mito é o de que foi o migrante europeu que fez a prosperidade do Sudoeste; que inicialmente só servia de valhacouto de criminosos e aventureiros fugidos do Rio Grande do Sul ou desgarrados do Contestado. O território correspondia, nesse tempo, a um espaço singular, com características próprias de estrutura física e trato social, que nos ajudam a compreender os valores do seu universo, onde prevaleciam normas e não regras, e onde a tolerância e o braço frágil da justiça alargavam o ralo da impunidade. O cenário é de matas densas e da prática de uma lavoura de subsistência e criatório de animais. A população era rala. No início do século XX somava 6.000, dispersa num território de cerca de 12.000 km². Os primeiros migrantes eram criminosos ou foragidos da justiça, provindos do Rio Grande do Sul ou Santa Catarina procurando se homiziar na região, principalmente na Colônia Bom Retiro (depois Pato Branco), que o governo paranaense criou em 1918, para abrigar os dissidentes do Contestado. Daí infiltraram-se pelos vales do Piquiri, Chopim e Paraná. O surto migratório se acentuou a partir de 1920 e passou a ser mais intenso durante a década de 1940, constituído principalmente de agricultores de descendência alemã e italiana provindos do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina.

Com o progresso da colonização, o surto de pequenos núcleos urbanos, multiplicaram-se as propriedades rurais de porte familiar e se desenvolveu a criação extensiva de suínos (porco alçado), que a produção da banha, a partir de 1930, estimulou um próspero comércio com a região e o mercado consumidor paulista. Resumindo, o que leva, porém, o trabalho à conclusão é que, desvelando esses menores conflitos de sangue e dor da vida cotidiana de uma população economicamente desfavorecida: os chamados “excluídos” e “infames” (isto é os sem fama), são revelados também os estigmas e paradoxos inerentes a uma concepção linear do discurso jurídico ao gerir conflitos economicamente irrelevantes.

Até 1920 o Estado não mostrou interesse pela região, senão diante da reivindicação de sua soberania pela Argentina, bem como o braço jurídico do Leviatã só se instalou efetivamente na região a partir da década de 1940, com o levante dos posseiros, mediante a superação de “suas fragilidades...morosidade, e por vezes, (até) do descaso que a justiça (era) exercida”... Avaliando o período, conclui o autor que, a maioria absoluta os processos concluíram pela absolvição do acusado por falta de provas (71,4%), ou senão, porque o prazo legal foi vencido (13%). Ainda noutros o processo foi encerrado abruptamente, sem sentença (7,8%) ou, quando não, o réu se viu condenado, mas nunca foi localizado (5,2%). Houve caso em que o andamento do processo ficou sustado por 23 anos e outro em que a sentença é de 1909 e o mandado reexpedido em 1925. E há também o espetáculo de um linchamento (Francisco Pinto de Lima), debitado à fragilidade da justiça. A pesquisa registra apenas uma sentença de condenação, seguida do acompanhamento do cumprimento de pena. Enfim, é um filão valioso porque permite compreender os valores que alimentaram na origem uma sociedade rural e recente, sua rede de sociabilidade e de controle e exclusão, diante da criminalização.

Assim, a obra nos dá mostras do talento do autor e sua vocação nos permite antecipar quadros ainda mais amplos da história social deste Estado, tão à míngua do seu passado.


1. Por último, mas não menos importante.