Réquiem a Alcides Munhoz Netto

13/07/2018 | Por Rui Cavallin Pinto

Em 2 de dezembro de 1983 a fatalidade nos roubou Alcides Munhoz Netto, em circunstâncias que comoveram seus amigos e admiradores de todo o Brasil e enlutaram a comunidade jurídica nacional. Alcides nos deixou no vigor dos seus 53 anos e de uma inteligência privilegiada, aureolado pelo prestígio de penalista de renome internacional, professor titular de Direito Penal e diretor da Faculdade de Direito da UFPR, autor de diversas obras e trabalhos jurídicos, advogado com banca de grande reputação, orador e patrono das liberdades públicas e do primado da democracia, contra todas as formas de arbítrio e autoritarismo.

Havia pouco tempo, Alcides granjeara destaque nacional, participando de memorável campanha pelo país, na disputa da presidência da OAB, que perdeu, surpreendentemente, por um único voto. Apesar de haver se afastado do Ministério Público por muitos anos, a partir de dezembro de 1968, Alcides nunca perdeu o convívio com os colegas e com a instituição, dentro da qual dividiu conosco grande parte de sua cultura e de sua consciência jurídica.

À sua despedida estiveram presentes inúmeros colegas promotores e procuradores, e a própria Associação de classe marcou presença na palavra do promotor João Péricles da Silva, seu colega de vida acadêmica e de ingresso no Parquet, cuja “Turma do Centenário” festejava naquele mesmo mês 30 anos de formatura.

Alcides entrou no Ministério Público quase adolescente, em 1952. Com apenas 22 anos, cursando o 4º ano de Direito, foi nomeado interinamente promotor da comarca de Jaguapitã. Com pequenos intervalos se deixou ficar ali, aguardando sua participação em concurso, ocorrida em setembro de 1954, quando logrou se classificar em 1º lugar e obter sua nomeação como promotor substituto da 1ª secção judiciária, com sede em Curitiba. E nesse cargo se conservou até o advento da Lei nº 4.310/1961, que o efetivou como 4º promotor  substituto da capital. Em 1962 já era o 12º promotor da comarca de Curitiba. Pouco tempo depois, estava convocado para prestar serviços na Procuradoria-Geral e, entrementes, passou a 1º promotor da capital, sem prejuízo de sua convocação, que foi revigorada.

Enfim, em 14.8.1964, foi nomeado Procurador-Geral do Estado (assim era então denominada a chefia do Ministério Público), pelo Decreto nº 15.712, do governador Ney Braga, permanecendo no cargo até 13.8.1966, ocasião em que se exonerou, a pedido, reassumindo o cargo de 8º sub-procurador do Estado (hoje procurador de Justiça), ao qual havia sido promovido em 24 de maio do mesmo ano. Por fim, em 12.12.1968 foi colocado em disponibilidade, a seu pedido, com base no art. 124 da Lei nº 5.849/1968 (Estatuto do Ministério Público do Paraná), que facultava o benefício, com vencimentos proporcionais, para todos os agentes do MP com mais de 15 anos de tempo de serviço e que se recusassem a aceitar a vedação do exercício da advocacia privada, então adotada.

Alcides Munhoz Netto foi um dos promotores mais brilhantes que teve a instituição paranaense do MP. Graças a seus dotes raros de inteligência e aplicação no estudo, deu à função desempenho e brilho exemplares. Admirado por seu aplombnatural e seus dotes de orador de grande apuro verbal e lógica irresistível, ganhou fama e admiração popular no Júri, em julgamentos memoráveis que ainda hoje se conservam na memória de muitos de nós.

 

Retrato a óleo de Alcides Munhoz Netto
Retrato a óleo de Alcides Munhoz Netto, pintado por sua mãe, Ilka Marques Munhoz, em 1990.

 

 

Tinha menos de 34 anos quando ascendeu à chefia do Ministério Público, em plena efervescência revolucionária. Ao deixar o cargo, dois anos depois, podia se orgulhar de ter prestado relevantes serviços à instituição, não só pelo desempenho pessoal que imprimiu à representação do cargo, como pelos programas que instituiu para o aprimoramento funcional dos seus membros e a alocação de recursos materiais para garantir maior eficiência para seus serviços. Também lhe devemos o esforço de dotar a instituição de maior autonomia e unidade. Entre outras contribuições, conta também seu papel de relator do Grupo de Trabalho que elaborou o projeto do estatuto do Ministério Público, tendo nesse sentido recebido louvor pessoal da Procuradoria-Geral pelo que representou “relevante serviço prestado ao Ministério Público do Paraná”.

Ao deixar a chefia do MP, dele disse então Javolenus, pseudônimo de quem a esse tempo respondia pela coluna “Justiça e Foro”, da Gazeta do Povo, em 18.8.1966, tirante o que, naturalmente,  possa parecer exagero:

(...) “O Ministério Público era, em verdade, até há algum tempo um setor considerado como de somenos importância na estrutura do governo. Dava mesmo para dizer dele, como ouvi certa vez, que parecia um órgão órfão de mãe solteira, grudado sempre às ilhargas da magistratura” (...). “Não obstante os esforços isolados de um ou outro Procurador-Geral, a nota característica do Parquet era o seu perdimento quase total nos enleios da política partidária ou na absorção pelos interesses da advocacia” (...). “Mas ai apareceu um jovem que, significativamente tinha o nome de Alcides e era mesmo um novo Hércules, só ele capaz do trabalho ingente de salvar da vergonha a nobre instituição. Deu-lhe efetivamente o vigor de sua determinação generosa, mas inabalável. Injetou-lhe o seu sangue quente do amor ao Direito e à causa da Justiça Pública. Carregou-a nos ombros largos pelos caminhos que conhecia muito bem do estudo sistemático e da investigação científica. Formou-lhe, assim, em verdadeira ação missionária a consciência funcional que não existia e soprou nela a alma que lhe faltava para cumprir o seu enorme papel na sociedade”.

Alcides deixou o Ministério Público precocemente, beirando os 52 anos de idade. Não se pode negar, entretanto, que foi como promotor que ele não só consolidou sua formação jurídica superior, como também pode viver uma experiência intensa do direito vivo, sem a qual ninguém tira patente de jurista.

Certamente sua inteligência aspirava por outros cenários, de horizontes mais amplos, onde pudesse participar mais largamente dos grandes debates do espírito e do seu tempo, em nível nacional e internacional, pugnando pela causa do homem como dignidade moral e pelo primado do direito e da democracia, como formas superiores de organização da vida social.

A fatalidade, porém, interceptou-lhe o fio da vida, em pleno viço da inteligência. Fiat voluntas Dei2. Do seu rico legado espiritual, fica entretanto o exemplo de quem, a golpes de talento e à força dos ideais, engrandeceu como poucos o Ministério Público do Paraná, e ainda pode servir a causa universal do Homem e do Direito. E, se não fez mais, foi porque não se lhe foi concedido, pela imperscrutável vontade divina.


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Notas do Memorial

1. Equilíbrio.
2. Que seja feita a vontade de Deus.