Renê Dotti, nosso maior ícone criminal

24/08/2021 | Por Rui Cavallin Pinto

Renê Ariel Dotti faleceu em fevereiro último (11), notícia recebida com pesar nacional e com decretos de luto no Paraná. Renê nasceu menino pobre no Ahú de Baixo, bairro de poloneses e italianos, nas imediações do Centro Cívico. Filho de pai pintor de parede e mãe costureira, muito jovem ainda se encantou com a ideia de participar da vida do teatro e se uniu a Ary Fontoura, Odelair Rodrigues e Sinval Martins, de sua geração, para criarem a Sociedade Paranaense de Teatro, por meio da qual apresentaram diversas peças. Com um dos personagens, inclusive, Renê ganhou um prêmio de representação. Porém, Ary tinha ambição de se fazer artista e seguiu em frente para uma carreira de sucesso nacional. Renê ficou, certamente porque era gago e talvez sentisse não ter voz de palco. Seguiu no estudo supondo, a princípio, tornar-se médico. Mas, a bom conselho de amigo, enveredou pelo Direito, onde se fez bacharel e deu início a seu noviciado profissional no escritório renomado do advogado Salvador de Maio, um ex-rábula.

Foi daí que, com escritório numa pequena sala alugada e as bênçãos da mãe Adelina, partiu para uma longa e brilhante carreira profissional, guiado pelo triângulo escaleno: trabalho, estudo e esperança. Foi homem de trabalhar desde às 5 horas da manhã. Então, marcado por um talento particular para o exercício da advocacia e um intenso devotamento ao Direito e à ciência criminal, foi naturalmente levado para o magistério do Direito, tornando-se, com o tempo, catedrático de Direito Penal da Universidade Federal do Paraná (UFPR), cuja cadeira exerceu por mais de quarenta anos.

Outrossim, também no espaço forense, logo revelou suas qualidades, convertendo-se em um dos criminalistas mais brilhantes e consagrados de sua geração, conquistando projeção e admiração até nacional. O culto do direito fez dele também o autor de diversas obras e um sem conto de participações na imprensa e revistas de sua especialidade. Sem excluir sua colaboração no trabalho legislativo de diversos anteprojetos de lei, como os das reformas da Parte Geral do Código Penal, da Lei de Execução Penal, além da Lei de Imprensa, da reforma do Código Processual Penal e do Sistema Eleitoral.

Mas de tudo quanto fez e ajudou a fazer, foi a sua atuação como criminalista e sua presença pessoal na tribuna do Júri que lhe granjeou maior admiração popular e lhe concedeu a admiração respeitosa dos seus oponentes em prélios dos mais memoráveis. E foram dezenas deles, de cujo número passou a dizer que até nem tinha conta. Mas, a memória que ficou não foi só a da quantidade deles, mas da qualidade e do melhor nível que assumiram, numa demonstração viva de quanto a própria lei oferece e a inteligência pode se servir para alcançar a verdade e prover a defesa das liberdades humanas.

 

Renê Ariel Dotti.
Renê Ariel Dotti (1934-2021) | Ilustração do autor

 

 

Ora, o “Dotti e Advogados”, ocupa três andares de um prédio no centro da cidade, contando com o atendimento de 60 profissionais, entre os quais 24 advogados, atuando nas áreas mais amplas do Direito. E a esse propósito, vale então destacar que, ainda recentemente, esse escritório mereceu o reconhecimento de ser um daqueles de alta recomendação, pelo guia “Transaction and Deals”, e que, ao que se sabe, é um dos mais respeitáveis deles, como, do outro lado, ainda e por igual, o “Chambers and Partners” lhe atribuiu também o 1° lugar na categoria da defesa contra os crimes financeiros. Igual prestígio ainda mereceu da Análise Advocacia 500, como uma das bancas de advocacia mais bem administradas.

Já se disse também que é costume nos períodos de vigência dos regimes discricionários e de repressão das liberdades democráticas, ocorrerem, por paradoxos, manifestações de maior expressão cultural e defesa dos autênticos sentimentos de liberdade. Assim, a nosso ver, parece que foi o que ocorreu conosco, num país submetido a um regime de ditadura militar, de mais de vinte anos, durante o qual foram extintos os partidos políticos, suspensa a concessão de habeas corpus e se passou a atribuir pena de morte e prisão perpétua aos opositores. Naquele período, constituiu manifestação de coragem e de sincero caráter democrático um jovem advogado e simples professor afrontar o poder constituído, para, em acessos sucessivos e perante os mais altos tribunais do país, pleitear medida de “habeas corpus!” para a libertação de um grande número de presos políticos acusados de professarem, simplesmente, ideias políticas diferentes das adotadas pelo governo militar, ou revelarem simpatia por sistemas de governo estrangeiro, considerado estranho ao nosso. Assim fez Renê Ariel Dotti, liderando outros, em 1966, num pedido de habeas corpus em favor do professor universitário José Vieira Neto, sob a acusação de vir sofrendo coação de parte do Supremo Tribunal Militar e do juiz auditor da 5ª Região Militar e outros. No mesmo ano, esteve Renê Dotti e José Carlos Alvim recorreram ao writconstitucional em favor de vinte jornalistas paranaenses no mesmo egrégio Supremo Tribunal, em pedido igual de habeas corpus.

Assim, por tantas vezes Renê Dotti se postou à frente na defesa dos perseguidos pelo autoritarismo militar – jornalistas, sindicalistas, professores e parlamentares –, liderando grupos de advogado e de opinião, como protagonista da resistência e da defesa das liberdades públicas e dos benefícios do regime democrático.

Em ocasiões mais amenas, foi Secretário de Cultura do Estado (1987-1991) e foi eleito para a Academia Paranaense de Letras (1992), ocupando a cadeira nº 3, na vaga de Newton Carneiro, saudado na ocasião pelo acadêmico Manoel de Oliveira Franco Sobrinho. Foi homem de trato cordial, boa prosa e rica convivência. Prestigiou nossa Academia com sua presença, de constante assiduidade e proveitosas intervenções. Embora tenha mantido com ele tardia convivência, guardo dele comovido e generoso acolhimento e referências.

Que Deus o tenha.


Nota do Memorial

1. Termo inglês que significa mandado, ordem escrita. Quando utilizado na terminologia jurídica brasileira, refere-se sempre ao mandado de segurança e ao habeas corpus (Fonte: Conselho Nacional do Ministério Público).