Quem tem medo do Ministério Público?

22/10/2018 | Por Rui Cavallin Pinto

Ainda recentemente, José Dirceu de Oliveira e Silva, ex-ministro de Lula e homem forte do seu governo, condenado a mais de 30 anos de prisão na operação Lava Jato, enquanto aguarda recurso da sua pena, deu uma coletiva à imprensa, em que fez duras críticas ao Ministério Público e ao Supremo Tribunal Federal. A um, para que seja proibido de fazer investigação e se atenha a seu papel tradicional de órgão de acusação. O outro é o de que nossa Suprema Corte só devia cumprir o papel de simples guardiã da nossa Constituição, para que não seja violada.

Dirceu, embora bacharel em Direito, teve seu registro de advogado cancelado pela OAB. Assim, ainda que tenha se iniciado como assistente jurídico e técnico parlamentar, logo assumiu carreira política, como deputado estadual e federal, mediante consagradas eleições, alcançando a presidência do próprio partido e a de Ministro-Chefe da Casa Civil do governo Lula, de quem foi até cogitado sucessor.

O Ministério Público no modelo de hoje é figura recente, mas saiu de uma imagem histórica que remonta a séculos, desde quando, em 1302, o rei Felipe o Belo fez a fusão da função do avocat du roi1 com a do procureur du roi2, reunindo as atribuições dos dois cargos, para demonstrar que a função cível e criminal eram as mesmas do patrocínio dos interesses do soberano e do próprio Estado.

Depois disso, sua imagem seguiu a corrente da história, assumindo, o papel e as formas que a vida social e política lhe deram. E há modelos diversos, mas difícil, porém, foi enfrentar as resistências, que surgiram logo após e adquiram manifestações diversas.

Houve quem negava qualquer papel ao Ministério Público. Então, os processos eram promovidos pelos ofendidos ou, ex officio, pelo juiz de vintena ou de paz, com recurso para Lisboa. Assim no Brasil Colônia. Mas há rejeições maiores na história da instituição: a de Músio, por exemplo, senador da república italiana, que considerava o Ministério Público “il più terribile dei flagelli3, ou de Broferro, para quem não passava de um “strumento fatalíssimo4, igual ao cavalo de Troia, “pieno d’armi e di perfidie5.

Para eles, os promotores deviam ser confinados em território exclusivo de acusação, onde, como dizia Humberto de Campos, deviam ser criados como os falcões para caça ou répteis para extrair peçonha.

Com o tempo, porém, foi preciso abrir caminho para o dever de tutela dos interesses sociais, como os cíveis, onde a batalha foi igualmente cruenta, com a oposição de Mortara e a de nosso João Monteiro, que considerava absurda e prejudicial sua intervenção, igual Pereira Braga, para quem nem a Inglaterra tinha instituição semelhante, e nem ela fazia falta.

Do, outro lado, porém, na ocasião a instituição foi saudada por Montesquieu como uma “loi admirable6 e para Rabat “um vislumbre de milagre”. Na mesma linha, Henrion de Pansy a considerou “um dos maiores passos da humanidade” e, para Roche-Flavan, um gesto de “sabedoria e humanidade”.

A despeito disso, porém, o Ministério Público cumpriu um longo e severo itinerário histórico inicial, na condição de “gens du roi7. Como vimos, durante os primeiros tempos da Colônia não havia Ministério Público. Isso só aconteceu em 1603, com a Casa de Suplicação da Bahia, e seu Procurador dos Feitos da Coroa. Sua atuação era de primeiro grau, criada em 1828, e exigia apenas conhecimento das letras de primeiro grau e manuseio das leis. Também, só era mantido “enquanto bem servisse”, confiando o cargo ao capricho do executivo. No Império, era o rei que nomeava o juiz e o presidente da província o promotor. O promotor era visto como subalterno do juiz, sujeito às suas advertências e a cassação da palavra.

Assim, dele não se ocupou a Constituição de 1824, nem a de 1889 ou a reforma de 1926; só se fez menção à escolha e nomeação do chefe. A de 1934, incluiu-o num capítulo, prevendo acesso e garantia do cargo. A de 1937 tirou seu destaque, mas inseriu sua participação proporcional na composição dos tribunais superiores. A de 1946, enfim, deu-lhe natureza institucional independente e estrutura federativa. Sua grande conquista, porém, veio com a Constituição de 1988 que, mais que as previsões feitas, lhe concedeu poderes que o elevavam à semelhança de um dos poderes de estado, e que incluía a função de promover diligências investigatórias e instauração de inquéritos policiais – que, no caso, provocou a reação do nosso réu inconformado.

Na verdade, essas conquistas são produto da passagem dos séculos e de uma sociedade hoje em permanente transformação e governo cada vez mais difícil. Essa lenta caminhada deixou, porém, marcas e testemunhos inumeráveis de sacrifícios exigidos para seu cruento resgate, que não incluiu só sujeição, humilhação e dependência pessoal, senão o sacrifício de vidas humanas. Nosso promotor de Justiça Ruy Kuenzer teve sua casa queimada por vingança da denúncia contra um potentado local. Em 2007, o promotor de Justiça Roberto Moellmann Gonçalves Barros foi assassinado em Curitiba (PR). A vida do promotor de Justiça Divino Marcos de Melo Amorim também foi ceifada, em 2004, em Goiânia (GO). Mesmo fim teve o promotor de Justiça Francisco José Lins do Rego Santos, morto com 16 tiros em 2002, em Belo Horizonte (MG), quando investigava a falsificação de combustível. João Alves da Rocha Neto e Valdir Dantas morreram quando investigavam diversos crimes nas Alagoas e no Rio do Cedro, em Sergipe. Enfim, há inúmeros registros iguais a esses da morte de promotores de Justiça na investigação e repressão do crime organizado. Infelizmente, não há estatística, porque essas ocorrências acabam absorvidas pela própria Instituição.

Hoje, a investigação do Ministério Público faz parte de sua função na Itália, na Alemanha e nos Estados Unidos, e os resultados estão aqui também, desde a participação no impeachment do presidente Collor e a prisão do senador Luiz Estevão, do ex-banqueiro Salvatore Cacciola, e que hoje desembocam na Lava Jato, com a prisão cerca de 100 pessoas de destaque na administração pública brasileira e o ressarcimento de cerca de 3 bilhões de reais. Porém, essa é outra história, ainda mais longa, embora fundamental para avaliar a participação do Ministério Publico, nesses dois campos de sua atuação.


Notas do Memorial

1. Advogado do rei.
2. Procurador do rei.
3. O mais terrível dos flagelos.
4. Instrumento fatalíssimo.
5. Cheio de armas e perfídias.
6. Lei admirável.
7. As pessoas do rei.