Quem matou o promotor Bezerra Cavalcante?
14/10/2019 | Por Rui Cavallin Pinto
No dia 15 de junho de 1989, o Ministério Público do Paraná comemorava 98 anos de sua criação. Na mesma noite, porém, no interior do gabinete do juiz Luiz Setembrino Von Holleben, no fórum da comarca de Ortigueira, o jovem promotor Francisco Bezerra Cavalcante tombava, repentinamente atingido pelo disparo de uma arma de fogo, que o levou aos estertores da morte, consumida logo a seguir.
O promotor chegara recentemente à comarca, designado por sua chefia para acorrer a uma reclamação do advogado local José Eduardo Bianchini, sobre a prática de irregularidades na realização de concurso para o provimento do cargo de oficial do registro de imóveis, cuja comissão fora confiada à presidência do juiz Luiz Setembrino. A alegação era de que as provas foram realizadas sem a intimação regular de todos os participantes, favorecendo a presença de apenas dois deles, com prejuízo do reclamante e de mais 20 outros, devidamente habilitados.
Isso gerou uma intriga na comarca e o juiz passou a atribuir ao advogado o uso de manifestações injuriosas à comissão, sejam expressões tais como “estranhamente”, “misterioso” e “segredo de justiça”, às quais atribuiu intenções ofensivas e que passaram a servir de respaldo à instauração de um inquérito policial contra o advogado. Além disso, o juiz decretou sua prisão preventiva, da qual ele só se livrou mediante a impetração de uma ordem de Habeas Corpus (H.C. 142/1989), promovida pela Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Paraná, prontamente concedida, por unanimidade, pelas Câmaras Reunidas do Tribunal de Alçada.
O concurso resultou anulado pelo Tribunal, a partir das provas, para que voltassem a ser realizadas.
Naquela noite de 15 de junho de 1989, o promotor se achava sentado numa poltrona do gabinete e, ao se levantar, e se dirigir à mesa do magistrado, sofreu um inesperado disparo de arma de fogo, em pleno peito, que transfixou seu corpo e o prostrou no chão, em decúbito dorsal, enquanto o projétil foi atingir o alto da parede, acima da janela da sala.
A compreensão produzida pela primeira impressão e circunstâncias fez admitir que tudo ocorreu devido a um imprevisto descuido da própria vítima que, ao exibir ou manipular uma pistola Colt’s 45 a deixou cair de suas mãos e, no esforço de tentar contê-la ou recuperá-la do chão, foi atingido pelo disparo provocado pela queda, ficando mortalmente ferido.
Ocorre, porém, que, à medida que as investigações se desenvolveram, embora conservando essa primeira impressão, os resultados obtidos seguiram desmerecendo-a, como ocorreu com o gráfico balístico, que admitiu que o disparo da arma poderia ter partido da mesa do juiz, atingindo a vítima à altura do peito e projetando-a para trás. Doutro modo, a posse da arma atribuída à própria vítima é outra parlenga obscura, relegada a um achado debaixo do banco de um veículo roubado e largado na rua, de que se fez entrega à polícia. Versão desmentida pelo escrivão policial e pelo chefe do destacamento local; arma que, de surpresa, reaparece depois num recibo do cartório criminal, ostentando ter sido inserida, mediante suspeita de fraude, no recibo de uma outra arma, então confiada ao promotor. Há notícia também de que a Colt’s 45 era pistola de uso também do próprio juiz, que com ela praticava exercícios de tiro (fls. 115-TJ).
Outrossim, entre outras dessas versões, tenha-se em conta que quase todas as testemunhas da tragédia eram serventuários da Justiça da comarca, recentemente admitidos nos serviços, condição que, diante da forte personalidade do magistrado, põe sob guarda a confiança na isenção e fidelidade das versões que ofereceram. Veja-se, a exemplo, o que ocorreu, tanto com Cláudio César Safraider como com seu irmão Mauro Célio Safraider, que revelaram tal grau de obediência e submissão ao magistrado que se recusaram a prestar novo depoimento no inquérito e, depois, voltaram a se recusar a se submeterem a uma experiência hipnótica, alegando que o faziam para cumprir ordem do juiz.
Enfim, as investigações do inquérito policial acabaram por oferecer ao Ministério Público elementos que autorizaram, a nível de suficiência, o oferecimento de denúncia criminal, atribuindo a Luiz Setembrino Von Holleben a prática do homicídio simples (art. 121, caput, do CP), embora o delito fosse resultado de qualquer motivação ou reação aparente. Ao contrário do trato que se deu à participação dos outros envolvidos, como pena agravada a Mauro Célio e Cláudio César, Álvaro Sady, Paraílio e Cláudio Jarmes, respondendo pelo art. 342, § 1º, tanto quanto Haroldo e Maria Júlia, passíveis das penas dos arts. 299, § único e 297, § 1º, todos do CP.
Oferecida a denúncia (26.3.1990), foi rejeitada (13.4.1992), mesmo opondo embargo (21.5.1992). Mas, em recurso especial, ganhou acolhida do STJ (18.5.1993), com a instauração da ação penal e interrogatório (mas só em 9.6.1998), às vésperas dos primeiros 9 anos da prescrição. No mais, o processo seguiu seu turno, ao largo do tempo, promovendo diligências, recolhendo processos, testemunhos (22.6.1989 e 10.4.2004), fazendo interrogatórios, declarando aposentadoria, perda do privilégio de função, revertendo o procedimento para primeiro grau, desaforamento, pronúncia (quase 20 anos depois), com designação da data do júri, suspensa, diante da declaração de extinção da pena pela prescrição, extensiva a todos.
O processo é representado por 15 volumes, num total de mais de 3.000 páginas, que se referem ao envolvimento do juiz Luiz Setembrino Von Holleben na prática de homicídio por arma de fogo, no seu gabinete, em que figura como vítima o jovem promotor Francisco Bezerra Cavalcante, em exercício na comarca de Ortigueira. A versão do descuido e do ato fortuito da vítima, mantém contraste, porém, com os resultados da perícia e circunstâncias pessoais do evento, que permitem supor que a exclusão da responsabilidade do magistrado foi, na verdade, favorecida pela sua condição de magistrado da comarca e, ainda, pela situação de subordinação das testemunhas, serventuários da Justiça, agravada também por se tratar de um ato súbito, espantoso, que colheu de surpresa os presentes em momento de confraternização pessoal.
Assim, ao cabo de um longo e agitado percurso de mais de 24 anos e do empenho do Estado para cumprir seu poder-dever de fazer da punição do crime um dos seus principais instrumentos de promoção da paz social, a prescrição continua sendo, na verdade, um dos maiores fatores da própria impunidade, não só pelas mãos dos seus mais hábeis advogados, como pela incúria de muitos que têm a incumbência de reprimi-lo, como ainda mais, porque conta com a vulnerabilidade do próprio sistema repressivo e com a tolerância dos que acreditam que o tempo se incumbe, afinal, de amortecer as consciências e apagar os danos de toda desgraça.
Afinal, embora todo processo se destine a convencer o delinquente da certeza do seu castigo, este, pelo contrário, oferece exemplo primaz de que, por maior que seja a pena e o prazo do seu resgate prescricional, não é difícil você garantir sua impunidade, bastando apenas usar dos recursos e oportunidades que a própria lei lhe oferece.