Os nossos rábulas
10/11/2021 | Por Rui Cavallin Pinto
Em 11 de agosto de 1827, Dom Pedro I sancionou a lei da Assembleia Geral a qual criou os cursos de ciências jurídicas e sociais no Brasil: um em Olinda, instalado no mosteiro de São Bento, depois transferido para Recife (1854); outro na cidade de São Paulo, no convento de São Francisco.
Até então só se obtinha formação jurídica na Europa, de preferência na universidade portuguesa de Coimbra (para os brasileiros), e, então, diante da escassez de bacharéis na Colônia, a atividade comum da justiça era habitualmente confiada aos rábulas, os quais, embora sem habilitação acadêmica, mostravam-se aptos para o trabalho forense – tanto para o exercício de função pública como na promoção de interesses particulares, como os da advocacia.
A magistratura colonial era então composta por juízes de fora, com formação jurídica, nomeados pelo rei, quanto no geral, por juízes da terra, mediante eleição, a qual incluía gente comumente ignorante das letras e das leis.
Durante o período da Colônia vigoravam as Ordenações Filipinas, ou Código Filipino – resultado da compilação e reforma da legislação portuguesa vigente naquele país até 1867 – adotada também pelo Brasil, após a independência, quando prevaleceu até a adoção do nosso primeiro Código Civil, em 1916.
Naqueles primórdios, o exercício da advocacia era concedido independente de graduação aos candidatos a provisionados, rábulas e solicitadores judiciais, mediante exame público prestado ao presidente dos Tribunais de Relação, com a expedição da carta de provisão válida por 2 ou 4 anos, renováveis. Mas essa licença só era válida para cidades onde não houvesse letrados ou seu número fosse insuficiente.
O rábula, porém, não foi uma criação nacional: há notícia deles na Europa desses primeiros tempos, para só citar, à mão, o jurisconsulto italiano Inério1, da Universidade de Bolonha, autodidata que se tornou luminar da ciência jurídica, como Lucerna Juris2.
No Brasil, tivemos o primeiro deles ainda no tempo do descobrimento (1531), um degredado de Portugal, referido como “bacharel de Cananéia”3, encontrado convivendo com os índios carijós. Pode-se incluir nesse grupo também o beato Antônio Conselheiro4, líder missionário da tragédia de Canudos, o qual deixou o legado de 5 mil soldados mortos e quase 25 mil dos sertanejos; mas, mesmo assim, hoje se procura resgatá-lo como rábula de militância forense, e se veja nele a figura de um líder missionário de uma epopeia de exaltação e coragem sertaneja.
Tivemos, entretanto, tantos outros deles, de presença permanente na vida judiciária do país. Em geral, filhos de famílias pobres, negros descendentes de escravos, como Luiz Gama5, filho de Luiza Mahin6, africana da Costa Mina7, cujo menino de 10 anos o pai, fidalgo português, vendeu no mercado de escravos, para pagar dívida. Trazido para São Paulo, o garoto foi analfabeto até os 17 anos e, pelo próprio esforço, tornou-se um expoente da tribuna forense e ardoroso abolicionista. Tentou estudar Direito nas Arcadas paulistas, mas foi rejeitado por ser negro. Dizem, porém, que diante disso passou a frequentar a biblioteca da Faculdade para adquirir sua formação jurídica. Oferecia-se pela imprensa para sustentar gratuitamente a defesa de todas as causas da liberdade. De uma vez só libertou mil escravos invocando a Lei Feijó, de 7 de novembro de 1831, a qual declarava livre os escravos vindos de fora do Império desde aquela data.
Morreu em 1882, alegando que deixava seu legado de miséria como o maior apanágio de sua virtude. Seu enterro chegou a produzir uma manifestação popular.
Amaro Cavalcanti8 foi um dos treze filhos de um mestre-escola de Caicó (RN) e fora alfabetizado pelo próprio pai. Começou no comércio mas, por aplicação aos estudos, se tornou professor de latim e rábula local. Contudo, com seus envolvimentos em movimentos culturais e relações no Ceará, resultou ser comissionado pelo governo da província para fazer estudos do sistema de educação primária dos Estados Unidos, onde, durante sua permanência, se matriculou na Albany Law School e recebeu título de doutor em Direito, o qua a Corte Suprema converteu em counsellor at law9, com o direito de exercer a advocacia. Passou então a cumprir uma longa carreira de desempenho da maior importância em funções políticas e administrativas do país, que incluíram o Ministério da Justiça e da Fazenda, o Senado Federal, o Supremo Tribunal e o cargo de juiz do Tribunal Arbitral de Haia. Produziu inúmeras obras jurídicas e de caráter financeiro, e foi um dos subscritores da Constituição Federal de 1891.
O rol oferecido por Pedro Paulo Filho10 (“Famosos Rábulas no Direito Brasileiro”) inclui também a presença de Cosme de Farias11, o “Major” por patente da Guarda Nacional, alcunhado “Tigre da Alfabetização”. Seu escritório consistia em duas cadeiras no corredor da Igreja de São Domingos, no qual atendia de 25 a 30 pessoas por dia. Viveu assim até os 97 anos e o plenário da Câmara de Vereadores de Salvador é hoje encimado pelo seu nome.
Outros nomes também podem ser lembrados, como Quintino Cunha12, baixinho e míope; João da Costa Pinto13, o negro Basílio, o qual possuía apenas o primário e era estivador no cais (“chifrador de sacos”). Bem-apessoado, foi dotado de um discurso seguro e insinuado por um vivo espírito brejeiro e irônico. Morreu na tribuna do Júri, aos 48 anos. Há também Manoel Vicente Alves14, o folclórico “Jacarandá” do foro do Rio, de cavanhaque, fraque velho, monóculo e cravo na lapela. Ainda podemos incluir o próprio João Fernandes Café Filho15, rábula aos dezoito anos, muito antes, portanto, de ocupar a presidência da República.
Por fim, nossa homenagem a Antônio Evaristo de Morais16, certamente o maior personagem e parte mais rica do capítulo da história da advocacia leiga do país. Foi menino de origem muito humilde, mas se converteu no maior advogado criminalista de seu tempo. Fez estreia no Júri em 1894, como rábula, para se graduar em Direito só 23 anos depois, aos 45. Atuou em julgamentos do Júri de maior repercussão social, como a “Tragédia da Tijuca”17, “A Tragédia do Icaraí”18, a “Tragédia da Piedade”19 e “O Crime de Gilberto Amado”20. Evaristo não foi, porém, apenas um advogado criminalista, mas também professor catedrático de Direito e autor de múltiplos trabalhos de criminalidade e história criminal, inclusive de sua vivência pessoal, além de homenageado como um dos principais autores da legislação trabalhista, precursor da lei de acidentes do trabalho. Morreu pobre, não deixou imóvel; seu legado foi o de dez contos no Banco Boavista.
Não possuo dados estatísticos acerca do número de rábulas que tivemos em nossa história. Porém, segundo Levi Carneiro21, eram dez mil no Rio Grande do Sul, por ocasião do Regulamento da Ordem (OAB). De todos, contudo, quase ninguém deixou livro, obra, trabalho ou discurso que sirvam para avaliação de sua qualidade e valia. Em geral, eram homens simples e de poucas luzes.
Certa feita o ladrão roubou o dinheiro das esmolas da igreja do Senhor do Bonfim, e Cosme de Faria foi quem fez sua defesa no Júri, alegando, no entanto, que não houve crime, senão apenas um milagre do Santo, o qual não precisa de dinheiro; ou, quando Luiz Gama, na defesa de um réu preto, adverte na sua peroração que tudo naquele julgamento era preto: preto era o réu, preto o promotor e preta a pretensa vítima. “Que tem, portanto, os brancos com isso?”. E conclui: “mandem embora este desgraçado!”. Por fim, o rábula Alberto de Carvalho22 saltou da tribuna e cobriu a cabeça do réu de poucas letras e luzes, mas entre eles sempre houve alguém mais manhoso, que participava dos julgamentos populares com tiradas de graças ou frases de efeito e espírito, assumindo até postura arrogante diante das solenidades oficiais, para o efeito de quebrar formalidades, conquistar a simpatia de juízes ou para só exibir suas excentricidades. Entretanto, muitos de seus testemunhos passam a atribuir a essas singularidades a manifestação de dotes de particular inteligência ou engenho, os quais serviram de centelha de luz ou chave de ouro para abrir a porta das absolvições mais fáceis, como vimos no caso do ladrão de esmolas da igreja do Sé com sua beca: para protegê-lo das injúrias e blasfêmias proferidas pelo promotor!
Esse o retrato simples da justiça desses velhos tempos, prestada por nossos rábulas o quais, embora tantas vezes mais simples na forma, trouxeram do povo, entretanto, a mesma seiva de sentimento de justiça e confiança nos bens da vida, que vão servir para a construção de um mundo certamente mais rico e aparentemente mais sábio como os dias de hoje. 23
Notas do Memorial
1. Inério foi um jurista italiano que viveu na segunda metade do século XI. Seu método de trabalho consistia na análise de glosa doutrinária (pequenos comentários ou notas de rodapé) com o objetivo de elucidar um termo jurídico. Algumas glosas eram tão complexas que se tornaram textos estendidos e detalhados sobre determinada lei. Inério e seus discípulos ficaram conhecidos como os Glosadores da Escola de Bolonha, cuja influência se espalhou por toda a Europa, principalmente em Portugal.
2. Lucerna Juris (ou Lucerna Iuris), traduzido literalmente do latim como “luminária do Direito” ou “luminária da lei”. O glosador italiano Inério era conhecido como Lucerna Juris.
3. Cananéia é o município mais austral do estado de São Paulo, localizado no litoral, faz divisa com o Paraná. Pesquisadores como Eduardo Bueno defendem a tese de que esta seria a cidade mais antiga brasileira, porém sem documentação que comprove a data da fundação, São Vicente, também paulista, é que detém, oficialmente, este posto. A Cananéia, era, portanto, pertencente à Capitania de São Vicente na época da colonização. A identidade do "bacharel da Cananéia" não é exata. Alguns, como o historiador português Jaime Cortesão, apontam para a figura de Duarte Perez, degradado em 1498 para o vilarejo, local em que se dava o limite do Tratado de Tordesilhas (1494). Outros, como o historiador Francisco Varnhagem, o Visconde de Porto Seguro e Ernesto Young, afirmam ser o fidalgo português Cosme Fernandes que fora degradado na terra de Vera Cruz por volta de 1502, com a missão de assegurar as posses portuguesas. Fernandes viveu entre os índios Carijós, atuando como intérprete durante décadas.
4. Antônio Vicente Mendes Maciel, filho de uma família tradicional do sertão do Ceará, nasceu em 13 de março de 1830 na então vila de Quixeramobim. Em 1861 iniciou a sua vida de peregrinação, indo de cidade em cidade, auxiliando na manutenção de igrejas e aconselhando as pessoas, motivo pelo qual passou a ser conhecido como Antônio Conselheiro. No ano de 1893, Conselheiro e seus seguidores se instalam em uma fazenda improdutiva no sertão da Bahia, dando origem ao vilarejo de Canudos. Antônio Conselheiro criticava a República, promulgada em 1889, pois acreditava que a separação entre o Estado e Igreja era uma manobra do anticristo para criar o caos entre as pessoas e a cobrança de impostos era imoral, porque o dízimo seria a forma correta de contribuição do fiel. Com suas pregações condenando a nova forma de governo brasileiro, o grupo de Conselheiro ganhou a fama de fanáticos religiosos e monarquistas. Assim crescia a tensão em Canudos. O proprietário original da terra, Barão de Canabrava, solicitou a reintegração de posse, não sendo atendido pelos posseiros. Ainda, o vilarejo não pagava os impostos, o que gerava atritos com o governo estadual. Ao mesmo tempo, o lugarejo atraia mais e mais pessoas, sertanejos pobres, caboclos do sertão e ex-escravos, flagelados pela desproporcional distribuição de renda e excluídos socialmente e economicamente, o quais se uniam na esperança de uma salvação milagrosa que emanava de Canudos. Em pouco tempo, a população aumentou para mais de 25 mil habitantes. Canudos era a representação da dicotomia entre o Brasil urbano e o Brasil rural, excluídos e marginalizados. Em outubro de 1896, Conselheiro comprou, na cidade de Juazeiro, um carregamento de madeira que não foi entregue. Imediatamente um boato se espalhou dizendo que uma tropa de fanáticos vinha de Canudos para invadir a cidade. O prefeito pede reforço ao governo e recebe 150 soldados. Após vários dias de espera, o Tenente Pires Ferreira, comandante do destacamento governista, decide atacar Canudos, uma vez que o “exército de fanáticos” não havia se movimentado. No meio do caminho, porém, a tropa de Ferreira é surpreendida pelos conselheiristas. Com um saldo de 10 soldados mortos e 16 feridos, a primeira batalha contra Canudos manchou a honra da jovem República brasileira e o governo federal se organizou para acabar, de uma vez por todas, com aquela ameaça. Diante do fracasso das três primeiras expedições militares, a quarta, e última, contou com um aparato de 5 mil homens e mais de 700 toneladas de munição e vários canhões. Posteriormente, o governo estadual enviou mais 3 mil homens para o campo de batalha formado em Canudos. Antônio Conselheiro morreu no dia 22 de setembro de 1897 e a cidade ainda resistiu por mais 15 dias, até os sobreviventes levantarem a bandeira branca da paz e se renderem. Mesmo assim, o exército, ao tomar a cidade, degolou todos os sobreviventes, em um massacre que vive até hoje na infâmia da história nacional. A chamada “guerra de Canudos” teve início em 1896 e terminou no ano seguinte, com o saldo de mais de 30 mil pessoas mortas, a maioria habitantes do povoado, que foi destruído. Várias obras foram escritas por testemunhas oculares do conflito, a mais famosa delas “Os Sertões” de Euclides da Cunha, o qual passou três meses na localidade como correspondente do jornal O Estado de São Paulo. Conselheiro teve o seu nome inscrito no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria, depositado no Panteão da Pátria e da Liberdade, em 13 de maio de 2019.
5. Luiz Gonzaga Pinto da Gama, baiano filho de uma africana livre e um fidalgo português, nascido em Salvador no dia 21 de junho de 1830. Foi jornalista, escritor, poeta, rábula e grande nome das causas abolicionistas e republicanas no Brasil imperial (1822-1889). Aos 10 anos de idade, seu pai o vendeu como escravo para quitar dívidas de jogos e o menino foi trabalhar no município de Lorena, em São Paulo, se alfabetizando no cativeiro. Em 1848, já liberto, junta-se ao exército, sendo requisitado para trabalhos de copista pelas autoridades em função de sua excelente caligrafia. Tentou estudar Direito na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (SP), porém teve sua matrícula negada por ser negro. Passou a frequentar aulas como ouvinte e os recursos da biblioteca da faculdade, tornando-se um autodidata. Dedicou a vida a auxiliar os negros escravos na conquista da liberdade e se envolveu nas causas republicanas. Faleceu em 24 de agosto de 1882, antes de poder ver a abolição da escravidão (1888) e a proclamação da República (1889). No dia 3 de novembro de 2015, a Ordem dos Advogados do Brasil, seção São Paulo (OAB-SP), concedeu o título de advogado a Luiz Gama, 133 anos após a sua morte. Em primeiro de dezembro de 2017, a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), também homenageou Luiz Gama com a nominação de uma sala do prédio histórico da instituição. Em 16 de janeiro de 2018, foi publicada a Lei nº 13.628 e a Lei nº 13.629, inscrevendo o nome de Luiz Gama no Livro de Heróis da Pátria e o declarando Patrono da Abolição da Escravidão no Brasil, respectivamente. No site do Tribunal de Justiça de São Paulo há uma exposição virtual sobre Luiz Gama, contendo documentos, como autos nos quais, o agora advogado, atuou.
6. Luiza Mahin foi uma personagem de existência controversa pelas poucas fontes documentais disponíveis. Foi trazida para o Brasil como escrava no início do século XIX. Era quituteira nas ruas de Salvador e em função disso, podia percorrer a cidade e encontrar com pessoas, sendo possível espalhar mensagens de revolta e levante negro contra os escravagistas. Esteve envolvida na Revolta do Malês (1835) e Sabinada (1837–1838). Perseguida pelas autoridades, fugiu para o Rio de Janeiro, local em que provavelmente foi capturada e deportada para Angola.
7. A Costa da Mina é uma região do golfo da Guiné a qual abrange os atuais países de Gana, Togo, Benim e Nigéria. Dessa localidade proveio grande parte dos escravos africanos para as Américas.
8. Amaro Cavalcanti Soares de Brito, nascido em 15 de agosto de 1849 na cidade de Caicó, no Rio Grande do Norte. Recebeu o título de doutor em Direito pela Albany Law School, de Nova Iorque, nos Estados Unidos, defendendo a tese "É a Educação uma Obrigação Legal?". Faleceu no dia 28 de janeiro de 1922 no Rio de Janeiro.
9. Traduzido do inglês para “conselheiro jurídico”. Tem o mesmo sentido de "lawyer", ou seja, advogado.
10. Advogado, escritor, poeta e político brasileiro. Pedro Paulo Filho nasceu em 4 de setembro de 1937 na cidade paulista de Pindamonhangaba e radicado em Campos do Jordão. Faleceu no dia 15 de novembro de 2014.
11. Cosme de Farias, baiano nascido na capital Salvador no dia 2 de abril de 1875. Apesar de ter cursado apenas o primário, tornou-se rábula e dedicou-se em atuar na defesa de pessoas sem condições financeiras. Em 1909, foi promovido à patente de Major pela Guarda Nacional. Sempre envolvido em diversas ações sociais, fundou no ano de 1915 a Liga Baiana contra o Analfabetismo, instituição que funcionou até a década de 1970 e foi responsável pela alfabetização de diversas pessoas na Bahia.
12. José Quintino da Cunha foi advogado, escritor e poeta. Nasceu no dia 24 de julho de 1875 em Itapajé, no Ceará. É lembrado pelo seu carisma e jeito irreverente. Faleceu em Fortaleza no dia primeiro de junho de 1943.
13. Segundo Pedro Paulo Filho, no livro "Famosos Rábulas no Direito Brasileiro" (2007), João da Costa Pinto era estivador e orador da associação de classe, que passou a atuar na advocacia criminal no Tribunal do Júri após ser bem sucedido na defesa de um colega.
14. Manoel Vicente Alves, nascido no dia 25 de abril de 1869 em Palmeira dos Índios, Alagoas. Foi talvez a figura mais folclórica do Direito carioca no início do século XX. Após trabalhar em vários ofícios, como quitandeiro, peixeiro, estivador, etc, começou a praticar a advocacia, mesmo sem ter estudado para tal. Defensor dos pobres, fez do seu escritório a Praça Onze, no Rio de Janeiro. Há duas versões para o seu apelido “Dr. Jacarandá”: dizia que ele afirmava aos seus clientes “confie em mim, pois sou como um jacarandá, pau para toda obra”, outra explicação seria em função de ser “advogado de porta de cadeia”, que na época eram construídas com tábuas dessa madeira. Homem negro, alto e de voz imponente, era um excelente orador, irreverente e caricato. O Dr. Jacarandá vestia um fraque surrado, chapéu velho e um monóculo. Vestimenta esta que inspirou a caracterização do personagem Zé Carioca (1941), do grupo Walt Disney. Manoel Vicente Alves faleceu no dia 19 de julho de 1948.
15. João Fernandes Campos Café Filho, mais conhecido apenas como Café Filho. Nasceu em Natal no dia 3 de fevereiro de 1899, foi advogado e político. Vice-presidente do Brasil na gestão de Getúlio Vargas (1951–1954) e o 18º presidente do país (1954–1955), assumindo após a morte de Vargas. Faleceu no dia 20 de fevereiro de 1970.
16. Antônio Evaristo de Morais nasceu no Rio de Janeiro em 26 de outubro de 1871. Participou da fundação do Partido Operário (1890), cofundador da Associação Brasileira de Imprensa (1908) e fundador do Partido Socialista (1920). Atuou na defesa dos marinheiros da famosa Revolta da Chibata e foi advogado de João Cândido Felisberto, o Almirante Negro. Integrou o recém-criado Ministério do Trabalho, de Getúlio Vargas, participando na criação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Faleceu em 30 de junho de 1939.
17. A Tragédia da Tijuca foi um famoso crime ocorrido no bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro, na noite de 24 de abril de 1906. Luís Lacerda, filho do então diretor do Museu Nacional e cientista, João Batista de Lacerda, atirou e matou o médico João Ferreira de Moraes. Imediatamente após o delito, um anspeçada da polícia (patente entre o Soldado e o Cabo, caiu em desuso, no Brasil, no meio do século XX) compareceu ao local e Lacerda solicitou para que o soldado o acompanhasse até o posto policial mais próximo, pois ele iria se entregar. Policial e criminoso caminharam lado a lado. No meio do trajeto, Lacerda, o qualainda empunhava o revólver, avistou a moça Clymene Phillips de Bezanilla, e sem pensar duas vezes, recarregou, rapidamente, o tambor da arma e disparou à queima roupa contra a mulher, ferindo-a no peito e braço esquerdo. Desesperada, Clymene correu em busca de auxílio, sendo perseguida por Lacerda e este perseguido pelo aspeçada, um tiro ainda acertou o pescoço e maxilar da malfadada senhora, sem, contudo, feri-la mortalmente. Apreendido, o facínora ainda foi linchado pela população indignada. A edição nº 190 de 1906 da revista O Malho, assim descreve as motivações do crime: “O Sr. Luiz de Lacerda amava D. Clymene Bezanilla, moça de rara belleza, viuva do saudoso diplomata chileno Dr. Luiz Bezanilla. O seu affecto fòra em tempo correspondido, dando logar a um projecto de casamento; mas por circumstancias que ainda não estão bem averiguadas, dera-se já ha muito rompimento. O Sr. Luiz de Lacerda foi preterido pelo Dr. João Ferreira de Moraes, jovem medico e rico herdeiro. Pormenores já publicados affirmam que Lacerda procurou esquecer esse golpe, emprehendendo diversas viagens. O tempo decorrido nisso empregara-o a linda viuva em estreitar os laços que a prendiam ao novo eleito, e é facto que o Dr. Moraes assumira a posição de noivo, devendo o casamento realisar-se por todo o mez corrente, seguido da partida do futuro casal para a Europa. Sabedor disso o Sr. Luiz de Lacerda agiu pela fórma que os leitores sabem, pondo um termo desgraçado a uma situação que podia ter outro muito mais natural e humano e menos cruel... (p.6)”. Lacerda se declarou culpado e não quis defesa, porém foi atendido por Evaristo de Moraes, que usou várias cartas trocadas entre o acusado e Clymene, baseando a defesa no fato dos dois terem um relacionamento passado e, cegado pelo amor, o réu praticou tais atos. Luiz de Lacerda foi absolvido no julgamento de 1907 e no segundo júri ocorrido no ano seguinte. A Tragédia da Tijuca entrou para o imaginário popular carioca.
18. João Pereira Barreto era um poeta sergipano nascido em 1874. Mudou-se para o Rio de Janeiro por volta de 1900 em busca de melhores tratamentos médicos para a esposa, que veio a falecer poucos anos depois. Conforme narra a edição nº 433 de 1912 do jornal carioca A Noite: “o fallecimento da esposa de João Barreto muito o acabrunhou e, desde então, tendo mandado os filhos para Sergipe, entregou-se elle à voragem do alcool” (p. 1). Em junho de 1912, Barreto se casou com a jovem Anna Levy e, com isso, parecia ter se curado do alcoolismo. Viviam na rua da Sagração, nº 300, no bairro Icaraí, na cidade de Niterói (ou Nitheroy, como era grafada na época). O poeta, porém, era um homem muito ciumento e “se algum homem parasse nas immediações da casa de Barreto e alli se demorasse um pouco, isto era causa para uma scena terrivel, a quem o tresloucado promettia mandar desta para a melhor, com um tiro de revólver. Assim se passaram os cinco mezes da vida do casal (p. 1)”. Na madrugada de 3 de dezembro de 1912, João Barreto, após uma sessão espírita, foi para uma casa de bebidas com os colegas, saindo de lá depois das 2h. Chegando em casa por volta das 3h, tomado por um sentimento de ciúme doentio, imaginando que sua esposa poderia estar lhe sendo infiel, bateu na porta da frente e esperou Anna abri-la, sem dizer uma palavra, sacou a pistola e acertou um tiro na cabeça de sua mulher, que estava grávida de 4 meses. Barreto foge para a casa do cunhado Dr. Sylvio Romero (influente jurista, escritor e político). Romero, que era amigo de Evaristo de Moraes, pediu para o criminalista defender Barreto das acusações. No primeiro julgamento, o uxoricida foi condenado a 21 anos de prisão. No segundo julgamento, Moraes conseguiu a absolvição do réu. Entre vaias, o automóvel que transportava Barreto, foi apedrejado na saída do Tribunal. No terceiro julgamento, a que Evaristo de Moraes menciona a calmante e sedativa ação do tempo (já havia passado mais de três anos do crime) ajudou-lhe em uma nova absolvição, dessa vez em um júri composto por “homens diplomados”. Embora Barreto tenha sido inocentado pela Justiça, o poeta foi condenado pela opinião pública. A Tragédia do Icaraí, como ficou conhecido o caso, rendeu páginas e mais páginas dos jornais e revistas da época.
19. A Tragédia da Piedade é um dos crimes passionais mais famosos do Brasil. Ocorrido em 1909, culminou com a morte do escritor Euclides da Cunha, autor de “Os Sertões”. Euclides casou-se com Anna Emílio Ribeiro de Assis em 1890, ele com 24 anos e ela com 18. Em função de seu trabalho, Euclides passava muito tempo longe de casa, como por exemplo os três meses cobrindo a campanha de Canudos ou os 13 meses em exploração na Amazônia. Em 1905, Anna, aos 33 anos e mãe de três filhos (Sólon, 1892, Euclides Filho, 1894, Manoel Affonso, 1901) conhece um jovem oficial do exército, o porto-alegrense Dilermando Cândido de Assis, de 17 anos. A partir daí os dois se tornam amantes, rendendo do fruto dessa paixão dois filhos, Mauro, nascido em 1906, porém morto com apenas sete dias de vida, e Luis, nascido no ano seguinte. No dia 15 de agosto de 1909, Euclides da Cunha saiu de casa com o objetivo de “matar ou morrer”. Na manhã daquele domingo, após sua esposa estar ausente do lar desde a sexta-feira, o autor de “Os Sertões” invadiu a casa do bairro carioca da Piedade em que vivia Dilermando e seu irmão, o zagueiro do Botafogo, Dinorah. O primeiro, imaginando que teria uma conversa com o “Dr. Euclides”, vai ao quarto se vestir apropriadamente, enquanto o segundo vai receber o invasor. Sem querer conversa, Euclides arromba a porta do cômodo e atira duas vezes contra Dilermando, Dinorah agarra o agressor na tentativa de defender o irmão, dando tempo para o oficial do exército sacar sua arma, Dinorah solta Euclides e corre para pegar também a sua pistola, porém leva dois tiros nas costas. Euclides ainda dispara mais vezes contra Dilermando, que revida com dois tiros, um mortal acerta o peito do escritor, cambaleando, Euclides da Cunha tomba no jardim de entrada da humilde residência da Piedade. Dinorah, ao avisar Anna, que se encontrava escondida em outro local da casa, teria dito “Aninha, estamos todos mortos, seu marido morreu, assim como Dilermando e eu também vou morrer”, porém apenas Euclides da Cunha seria velado, na Academia Brasileira de Letras, naquele dia. A Tragédia da Piedade, porém, não teria desfecho naquele domingo de 15 de agosto. Dinorah ainda seguiu jogando futebol mesmo com a bala alojada em sua espinha, contudo, em função da gravidade do ferimento, foi desenvolvendo hemiplegia, ou seja, paralisação de uma metade (esquerda ou direita) do corpo. Com dificuldades de se locomover, sua carreira como atleta chegou ao fim em 1910, ano em que foi campeão Carioca pelo Botafogo. A bala só foi retirada de sua coluna em 1913. Viveu com extrema dificuldade no Rio de Janeiro, pedindo esmolas e se locomovendo com ajuda de muletas. Retornou para Porto Alegre, sua cidade natal, em 1916. Tentou suicídio diversas vezes, até que em novembro de 1921, se atirou no Lago Guaíba, sendo tragado pelas águas. Dilermando, que foi julgado e absolvido por legítima defesa em 5 de maio de 1911, casou-se com Anna em seguida, no dia 12 do mesmo mês. Cinco anos mais tarde ele viu aquele dia 15 de agosto se repetir: em 4 de julho de 1916, enquanto lia uns documentos no cartório da então capital do país, Euclides da Cunha Filho, o Quidinho, de 22 anos de idade, com o objetivo de vingar seu pai, atira pelas costas de Dilermando, este, mais uma vez ferido, consegue revidar e mata o seu agressor. Mais um escândalo, mais uma absolvição. O casamento de Dilermando e Anna, nascido na infidelidade, acabou 20 anos depois, quando Anna descobriu que o marido tinha uma amante chamada Maria Antonieta de Araújo Jorge, mais jovem do que eles, com quem Dilermando casou após a separação com Anna. A Tragédia da Piedade gerou comoção nacional, mesmo absolvido pela Justiça, Dilermando foi condenado pela opinião pública e a fama de assassino jamais foi esquecida, ainda hoje lembrado como “o homem que matou um dos maiores escritores do Brasil”. Fama essa que sua filha, a escritora Dirce de Assis Cavalcanti tenta mudar, em 1998 ela lançou o livro “O Pai”, em que narra a história a partir do seu olhar de filha. Ela faz campanha para que a palavra “assassino” não seja usada na biografia de seu pai, pois, argumenta, “ele matou em legítima defesa”. No livro “Matar para não morrer: a morte de Euclides da Cunha e a noite sem fim de Dilermando de Assis”, a historiadora Mary Del Priore analisa o triângulo amoroso e o fundo histórico em volta da tragédia.
20. Gilberto Amado foi um escritor, jornalista, advogado e político que assassinou o poeta, e também político, Annibal Theophilo. Segundo relatos, o desentendimento entre os dois teve início a partir das críticas que Gilberto Amado escrevia no jornal a respeito de amigos do poeta. No dia 19 de julho de 1915, ao final da cerimônia da Hora Literária (uma reunião com de vários literatos brasileiros), realizada no salão nobre do Jornal do Commercio, no Rio de Janeiro, Gilberto Amado foi ofendido, mais uma vez por Annibal. Paulo Hasslocher, amigo de Amado, insistia para que este reagisse, porém ao perceber que Gilberto não faria nada, Hasslocher foi tirar satisfações com Theophilo e daí teve início uma contenda entre os dois. Gilberto sacou seu revólver e disparou três vezes, matando o poeta com um tiro na nuca no saguão de entrada do edifício. O crime, novamente, ganhou as manchetes dos jornais da então capital do país. A edição nº 5960, do dia seguinte ao acontecimento, do jornal Correio da Manhã, denunciou que Pinheiro Machado, então presidente do Senado, agiu pessoalmente para a libertação de Gilberto Amado, integrante do mesmo partido do senador. Curiosamente, Pinheiro Machado seria assassinado apunhalado pelas costas em setembro do mesmo ano. O julgamento no Tribunal do Júri foi presidido pelo juiz Manuel da Costa Ribeiro, que anos antes havia presidido o Júri de Dilermando de Assis, envolvido na morte de Euclides da Cunha. O mesmo Júri, aliás, condenou Manso de Paiva, assassino de Pinheiro Machado. Assim como Dilermando, Gilberto Amado foi absolvido pela Justiça, porém condenado pela opinião pública.
21. Levi Fernandes Carneiro, foi escritor, político, jurista e um dos fundadores, e o primeiro presidente da Ordem dos Advogados do Brasil. Além disso, ocupou o cargo de Consultor-Geral do Brasil no governo de Getúlio Vargas (1930–1932), deputado da constituinte de 1934 e membro brasileiro, e juiz (1951 a 1954), no Tribunal Internacional de Justiça em Haia. Ocupou a cadeira nº 27 da Academia Brasileira de Letras. Nasceu em Niterói no dia 8 de agosto de 1882 e faleceu no dia 5 de setembro de 1971 no Rio de Janeiro.
22. Alberto de Carvalho foi rábula notável no Rio de Janeiro e teve episódios relatados por Evandro Lins e Silva, no livro "A Defesa tem a palavra" (2011).
23. Quando a República foi promulgada, os Estados passaram por um processo de reorganização administrativa e jurídica. No Paraná, o Ministério Público (e o Tribunal de Justiça) foi criado pelo Decreto nº 1 em 15 de junho de 1891. Tanto o procurador-geral de Justiça, como os promotores, eram de livre nomeação pelo governador do Estado. Como as faculdades de Direito ainda eram escassas no país, principalmente no sul – a Universidade Federal do Paraná só foi criada em 1912 –, em muitas localidades no interior do Paraná não havia promotores públicos com formação jurídica, assim eram nomeadas, conforme o parágrafo único do artigo 145 da Lei nº 322 de 1899, “em falta de graduados em direito, poderá ser nomeado qualquer cidadão brasileiro, maior de 21 annos que, a juiso do Governador, preencha as necessarias condições”. A prática de nomear promotores leigos, na falta de graduados, se manteve até por volta de 1949, quando o ingresso na instituição passou a ser mediante concurso público.