O promotor e o anarquista

07/02/2022 | Por Rui Cavallin Pinto

Há algum tempo escrevemos sobre a surpresa e o risco daqueles que já exerceram a função acusatória do Ministério Público, e viveram episódios que lhe custaram até a sensação de perder o cargo, sofrer agressão, ou mesmo morrer assassinado, como tem acontecido tantas vezes. Há relatos em que a disputa na Justiça alcança o topo da emoção e desanda na paixão e na violência.

A propósito, Roberto Lyra1, atento a esses momentos emocionais dos intérpretes oficiais, deixou registro de acusadores que se expuseram aos maiores desafios e depois morreram “pobres, velhos e esquecidos” daquelas ocasiões em que viveram momentos de grandeza e coragem ou padeceram frustrações de que ainda guardam lembrança. Não há quem se exponha a um desses enfrentamentos e que não se ressinta do clima de emoção que por vezes assoma a seus protagonistas.

 

Ilustração de anarquismo
Ilustração do autor.

 

 

Há exemplo de um episódio desses, por conta de uma das figuras históricas do “parquet” francês, lembrada por Lyra e interpretada pelo procurador Quesnay de Beaurepaire2, da Cour d'Assises3 do Sena, em Paris, de que nos vale lembrar, pelo menos para homenagear a dignidade pessoal assumida, ou a coragem com que reagiu e se postou defronte de um tribunal imbele, tomado do pavor coletivo que invadia a cidade de Paris.

Foi tudo ao tempo do apogeu do anarquismo, nas últimas décadas do século XIX. Embora o Czar Alexandre II, da Rússia, tivesse sido assassinado em 1881, pelas mãos dos anarquistas, foi a França e parte do continente europeu (sobretudo Paris), que se tornou o centro do terrorismo e das atuação de sua liderança.

O anarquismo constituiu uma doutrina política e filosófica que defendia a ausência de governo e era contrária a toda forma de autoridade e dominação política.

O primeiro a propagá-la foi o clérigo inglês Willian Godwin e seu teórico Proudhon4, que pregava a formação de uma organização social mutualista, com base na solidariedade e livre associação dos seus membros. Contou com o apoio de grande pensadores e pregadores de sua doutrina político-social, como Antero de Quental5, Tolstói6, Bakunin7, Stirner8, e, no Brasil o mineiro Avelino Fóscolo9, autor do primeiro romance ambientado em Belo Horizonte.

Ainda, o italiano Artur Compagnoli, que fundou a Colônia Anarquista de Guararema, em São Paulo, e Giovanni Rossi, da Colônia Cecília, no Paraná.

O anarquismo semeou pânico na Europa, sobretudo nas décadas de 1880 e 1890, na França e na Espanha e se irradiou para a América, quando do atentado de Alexander Berckman contra a vida do tycoon10 do aço americano Henry Clay Frick. Os atentados se sucediam constantemente, visando autoridades e figuras proeminentes da vida política, social e econômica do país. Em 1884, o jardineiro Louis Chavés assassinou a madre superiora do convento que o hospedara em Marselha e no mesmo ano Auguste Reinsdorf (que se dizia pai do anarquismo alemão), tentou contra a vida do Imperador Guilherme I e sua princesa. Na mesma ocasião Paolo Schichi lança uma bomba contra o consulado espanhol em Gênova. Jerônimo Caseiro apunhala o presidente francês Sadi Carnot e Isabel, imperatriz da Áustria, é morta em Genebra, a golpes de estilete pelo anarquista Luigi Luchen.

Naquele dia, porém, na Cour d'Assise seriam julgados Ravachol11 e seu comparsa Biscuit12. François Claudius Koënigstein foi considerado o maior terrorista do século XIX, o arquétipo do anarquista "lançador de bombas".

 

Ravachol
Jornal Le Figaro, 1º de abril de 1892.

 

 

Em 1º de maio de 1891, os anarquistas promoveram uma manifestação em Paris, para reivindicarem direitos sociais e trabalhistas, e a polícia usou metralhadora para dispersá-los, quando muitos dos seus líderes foram presos. Durante os julgamentos, o promotor Léon Bulot atuou de uma forma tão decisiva perante o Tribunal que seu presidente Edmond Benoît os condenou a longas penas. Em desforra, Ravachol destruiu a casa dos dois. A do promotor, na rua de Clichy, deixou seis pessoas gravemente feridas. A do juiz Benoît não deixou vítimas, estava desabitada. Também para vingar seu delator, o garçom Jules Lhérot, Ravachol fez explodir o restaurante Very, onde ele trabalhava.

Na ocasião do julgamento de Ravachol e seus comparsas, o prédio do Tribunal foi severamente guardado por forças policiais e predominava uma impressão geral de terror e desassossego. Corria o boato de que o prédio podia ser implodido. Os jurados haviam recebido cartas de ameaças e insultos. O restaurante Very sofrera um atentado e chegou a notícia de que Emile Henry jogara uma bomba no Terminus, um dos bares mais sofisticados de Paris. Conta Roberto Lyra que Ravachol e seus asseclas entraram arrogantes no Tribunal. Pareciam zombar da Corte e faziam gestos obscenos ao júri. Simon, vulgo “biscuit”, o “enfant terrible13 do bando, fazia graças e ria às gargalhadas. O temor era um sentimento geral do plenário e o próprio presidente da Corte conduzia o procedimento judicial de forma reverenciosa, como se o fizesse a contra gosto e a se desculpar de tudo.

Foi então que, por sua vez, postado na tribuna do parquet, Beaurepaire assumiu a acusação. Assumiu sem medo e, talvez fosse o único do plenário que ainda não se mostrara tocado pelo temor geral. Mas foi incisivo: “Quem tem medo aqui?” E Lyra então repete suas palavras: “conceder qualquer atenuante a Ravachol é injuriar-vos a vós mesmo, tomados pelo mais baixo e vil dos sentimentos – o medo!”

Certamente, não cabe aqui reproduzir toda a vibrante accusation de Beaurepaire. Foi peça modelar, igual a de tantos grandes combates que sustentou com Henry-Robert, o seu grande adversário do júri de Paris.

Conta Lyra, entretanto, que Ravachol acabou absolvido, diante de cuja decisão Beaurepaire teria dito, simplesmente: “O medo é uma coisa ignóbil”.

Penso, porém, que o episódio não terminou só aí. Jean Maitron é historiador contemporâneo do movimento anarquista da Europa, e certamente se deve a ele a versão mais atual e hoje predominante de que Ravachol (e seu grupo) foi, na verdade, condenado à pena de trabalhos forçados pelo resto da vida. A bem de ver, porém, teve outras acusações que resultaram na sua pena capital.

Morreu guilhotinado, em 11 de julho de 1892, em Montbrison: tinha 32 anos.


Notas do Memorial

1. Roberto Lyra (1902-1982), jurista recifense, ingressou no Ministério Público do Distrito Federal em 1924, no Rio de Janeiro (na época capital do Brasil). Seus memoráveis embates no Tribunal do Júri com rábulas e advogados célebres do seio carioca, como Evaristo de Macedo e Evandro Lins e Silva, renderam-lhe a alcunha de “o príncipe dos promotores públicos”. Foi um dos fundadores da Faculdade de Direito do Rio de Janeiro (atual UFRJ) e da Associação do Ministério Público do Distrito Federal (hoje AMPERJ). Deixou vasta bibliografia jurídica. O Memorial do MP do Rio de Janeiro mantém um totem em homengem ao ilustre "príncipe". Em 2018, a Coordenadoria de Análises, Diagnósticos e Geoprocessamento (CADG) do MPRJ criou uma inteligência artificial com o objetivo de analisar documentos judiciais e estabelecer estatísticas e previsões sobre o andamento dos processos, gerando mais celeridade na atuação do órgão. A tecnologia foi batizada de Lyra.

2. Jules Quesnay de Beaurepaire.

3. Tribunal de Justiça.

4. Pierre-Joseph Proudhon.

5. Antero Tarquínio de Quental, importante escrito português do século XIX.

6. O russo Liev Nikolaevitch Tolstói é amplamente reconhecido como um dos maiores escritores de todos os tempos.

7. Mikhail Aleksandrovicth Bakunin, um dos mais influentes revolucionários anarquista do século XIX.

8. Johann Kaspar Schmidt, mais conhecido como Max Stirner, filósofo alemão cuja principal linha de pensamento aborda o egoísmo humano e o anarquismo individualista.

9. Antonio Avelino Fóscolo foi um escritor e anarquista mineiro. Seus romances traziam forte discurso social, como a desigualdade e a escravidão. Com o enfraquecimento do anarquismo no Brasil a partir da década de 1920, os textos de Fóscolo acabaram caindo no esquecimento. Ocupou a cadeira número sete da Academia Mineira de Letras. A Capital, romance de Fóscolo, lançado no início dos anos de 1900, tem como pano de fundo a construção da cidade de Belo Horizonte, fundada em 12 de dezembro em 1897.

10. Magnata.

11. François Claudius Koënigstein.

12. Charles Achille Simon. Tinha 18 anos quando foi preso e recebeu a pena de exílio e trabalho forçado na Guiana Francesa.

13. Criança terrível.


* Versão atualizada do texto original publicado em 2018.