O Projeto Memória de Santa Catarina

19/01/2012 | Por Rui Cavallin Pinto

O Projeto Memória do Ministério Público catarinense foi lançado em julho de 2010 e seu plano de gestão confiado ao historiador-consultor gaúcho Gunter Axt. Não pudemos ter acesso a seu plano estratégico, porque tem senha pessoal e nossa solicitação foi recusada, mas podemos antecipar que o projeto propõe a construção de prédio próprio, destinado à preservação e acesso da memória da instituição e seus agentes, além de manter uma casa de cultura, destinados, ambos, à reflexão da identidade institucional e a manter o diálogo com a comunidade, seu alvo primaz. Gunter Axt é historiador de larga competência e, entre seus primeiros frutos, já organizou a edição de “Histórias de Vida – Os Procuradores-Gerais”, primeiro volume de uma série que se propõe a construir a memória oral da instituição, através de entrevistas com nove dos seus Procuradores-Gerais e a de um antigo servidor, com mais de 45 anos de casa e relação afetiva com a classe; primeiro simples datilógrafo, hoje analista do Ministério Público.

O retrato original da instituição era igual ao nosso, e até pior em outras partes do país. O ganho era então muito pouco, e desestimulava os mais ambiciosos. Hélio Rosa, um dos entrevistados mais antigos, deixou o emprego de mil e quinhentos dólares no Consulado Americano, para ganhar menos de um terço como promotor, e João José Leal foi para a comarca de Palmitos a troco de cinco salários. Certo que o promotor podia suprir esse ganho com a advocacia, mas mesmo assim sofria as restrições próprias da função e de uma sociedade geralmente acanhada e em formação. O orçamento do Ministério Público era exíguo e os repasses de verbas enfrentavam constantes atrasos e dificuldades para sua liberação. O promotor recebia seus vencimentos das mãos dos coletores estaduais (igual a nós), mas houve tempos de seguidos atrasos, de dois ou até três meses. O material de expediente ficava por conta do promotor, que tinha de comprar até máquina de escrever, ou se servir de uma delas do cartório onde atuava.

Não havia casa para promotor, que acabava se alojando com a família em pensões ou moradias sem nenhum conforto. O acesso às comarcas era feito por ônibus velhos em estradas intransitáveis, em que aproveitava trecho de estrada de ferro; o que aumentava ainda mais as distâncias. José Daura, para chegar a Araranguá, sua primeira comarca, em 1947, viajou seis horas de ônibus de Florianópolis até Laguna; seguiu de trem até o rio que deu nome à cidade, e completou o percurso de balsa até seu destino. Para ir de Palmitos a Florianópolis João Carlos Kurtz ia primeiro a Pato Branco, no Paraná, e daí alcançava o trem em Porto União, donde seguia até Mafra. A comarca de Chapecó, por exemplo, se estendia de Joaçaba à Argentina e do Rio Grande ao Paraná. O promotor era visto por muitos como um auxiliar do juiz ou um aspirante ao cargo.

O primeiro concurso de ingresso na carreira do Ministério Público foi em 1971 e o primeiro Procurador-Geral, escolhido em lista tríplice da classe, tomou posse em 1991. Até então, a chefia da instituição era cargo comissionado, de livre escolha do governo, podendo recair em pessoa estranha à carreira; mas sempre demissível “ad nutum”. O cargo de promotor substituto foi criado em 1971, como primeiro estágio da carreira, até então ocupado pelo promotor adjunto, que era dispensado de formação jurídica. Conta José Daura que seu adjunto em Chapecó era então um açougueiro, modesto político local.

Porém, há temas que deste o início entremeiam as narrativas mas se acomodaram com o tempo, como a isonomia com a magistratura e os repasses financeiros do governo, responsáveis, com certeza, pela independência e o papel social que a instituição hoje ostenta. Mas a gente percebe claramente a resistência que se armou então contra eles, por alguns setores da magistratura; bem como o dissenso criado na área do MP federal e do Rio de Janeiro, pleiteando manter a advocacia. Assim, igual a tantos outros MPs do Brasil, o de Santa Catarina se empenha em preservar sua memória e até se vale da importante orientação do historiador e gestor cultural Gunter Axt, especialista em história do Direito e do Poder Judiciário brasileiro, cujo renome inclui, entre tantas outras contribuições culturais, ter assumido a gestão da memória do Poder Judiciário e do Ministério Público do Rio Grande do Sul, e consta ainda ter prestado assistência ao Supremo Tribunal Federal. As circunstâncias justificam que então se fale sobre a sorte do nosso Memorial, uma iniciativa que foi pioneira no país e hoje é levada a reboque diante de tantas outras mais eficientes e produtivas, pois, salvo o ano de sua criação (1996), que contou com 36 entrevistas, de lá para cá as entrevistas se esvaziaram drasticamente, registrando excepcionalmente 4 delas (2003), que recaíram para 3 anuais (1997, 1998, 2000, 2002); descendo ainda mais para 2 por ano (2004 e 2008), para se juntar a outras de só 1 entrevista, em anos desemparceirados (2001, 2006, 2009 e 2010); e, enfim, chegou até ao melancólico ano zero, em que nada se fez (1999, 2005, 2007 e 2011), dentre os motivos justificáveis ou não, destaca-se no momento, a delonga na aquisição de equipamento adequado para a realização do registro de nossa história oral.

O gráfico abaixo retrata melhor, per oculus, o quase vazio de nossa memória institucional, nesses últimos quatorzes anos, e isso diante de um quadro de agentes muito mais amplos do que o de Santa Catarina e de outros estados:

 

 

 

Diante de tais números, é evidente que perdemos parte significativa e certamente valiosa da história do Ministério Público paranaense, por seus fatos e seus homens. O passado é que dá corpo e alma a uma instituição. Sem ele ela é apenas uma lembrança que o tempo apaga. Devemos pensar nisso, enquanto é tempo.