O Ministério Público do Paraná na primeira quadra da República

07/05/2021 | Por Rui Cavallin Pinto

Os que buscam as origens do Ministério Público do nosso país chegam à conclusão de que, a bem de ver, a instituição não existiu como tal durante todo o período do Império. Salvo o Regimento das Relações Públicas do Império, da lei de 2 de maio de 1874, na verdade, nenhum outro documento legal faz menção ao Ministério Público, seja o Código de Processo Criminal de 1832 e sua lei de reforma (Lei nº 261, de 3 de dezembro de 1841 ou o próprio Regulamento nº 120, de 31 de janeiro de 1842, relativo à execução penal).

Os que havia até então eram simples representantes do Poder Executivo junto aos juízes criminais e cíveis, sempre que houvesse interesse da fazenda pública ou lhes competisse a tutela de incapazes ou assemelhados. Mas sempre como agentes subordinados ao Executivo e mantidos no cargo enquanto conviesse ao chamado interesse público.

Faltava-lhes, porém, o caráter de instituição, que lhes dotasse de um princípio de unidade, de centro, inspeção e harmonia, como aponta Pimenta Bueno¹.

 

Campos Salles e o Decreto nº 1030
Campos Salles e o Decreto nº 1030 | Ilustração do autor

 

 

E isso só vai ocorrer, mesmo em parte, com o advento da República, durante o governo provisório do marechal Deodoro da Fonseca, quando era Ministro da Justiça Campos Sales. Foi o Decreto nº 848, de 11 de novembro de 1889, que organizou as bases da reforma da justiça criminal, seguido do Decreto nº 1.030, de 14 de novembro do mesmo ano, que estruturou a justiça do Distrito Federal e serviu de modelo para as demais unidades federativas, que o Ministério Público se viu dotado da condição de instituição e considerado órgão indispensável à organização democrática, destinado a servir como advogado da lei e fiscal de sua execução.

E foi assim, no dizer de Cesar Salgado, que o Ministério Público saiu do limbo imperial, onde hibernara por quase oitenta anos, e emergiu de um salto, armado cavaleiro, como Palas Atena da cabeça de Júpiter.

E o Vulcano da lenda mitológica foi Campo Sales, o patrono do Ministério Público como instituição nacional, dotado de atribuições e responsabilidades próprias, para cumprir as funções de vigiar, atuar e defender os interesses gerais contra todas as violações do direito.

E mais, para sustentar objetivamente sua independência, fez vitalícios os cargos de procurador-geral e subprocurador, além de determinar aos demais membros da hierarquia o direito de serem mantidos nos cargos, enquanto bem servissem.

Embora essas franquias fossem de curta duração, até quando os estados passaram a organizar os serviços de sua própria Justiça, o Rio Grande do Sul manteve, mesmo transitoriamente, parte dessas garantias, sustentando que os seus promotores só poderiam ser demitidos a pedido ou por sentença judicial. Como se sabe pelas Disposições Transitórias da Constituição de 1891, os estados membros deveriam desde logo promover a organização dos serviços de sua competência, em substituição daqueles exercidos pela União, além de lhes competir a iniciativa da elaboração de suas respectivas Constituições, até o final do ano de 1892, sob pena de se submeter à Carta Política de outro estado, entre aquela que revelassem maior compatibilidade, a critério do Congresso.

Foi nessas circunstâncias, portanto, que o então presidente do estado do Paraná, Generoso Marques, recém eleito, editou o Decreto nº 1 , de 15 de junho de 1891, correspondente à organização judiciária do estado, em cujo documento tratou, em seção própria, o Ministério Público, dispondo no art. 40 que a ele incumbia a representação e defesa dos interesses do estado, bem como os da justiça pública, órfãos, interditos e ausentes, perante os juízos e tribunais. O procurador-geral teria mandato certo por quatro anos e seria nomeado por ato do presidente do estado, dentre os bacharéis em Direito, com pelo menos cinco anos de prática de foro, contados de sua graduação. Também a nomeação e demissão de promotores era da competência do governo estadual, mas a sua escolha deveria recair, de preferência, em bacharéis em Direito e, só na falta eventual de um deles na comarca, servir no cargo aquele que o governo ou o juiz nomeasse.

A Constituição que se seguiu em 13 de julho de 1891 manteve esses mesmos princípios, a despeito de já não mencionar a expressão Ministério Público para fazer referência apenas a promotores públicos, com atribuições que seriam objeto de lei própria.

Curioso observar também que, pelo art. 44, o provimento dos cargos de juiz de Direito, em caráter vitalício, só poderia ocorrer entre juízes municipais e promotores com ao menos quatro anos de exercício. Os cargos de juiz municipal e promotor serviram muitas vezes como uma espécie de estágio preliminar ou preparatório para o acesso à magistratura.

Com a nova Constituição de 7 de abril de 1892 – e sua posterior reforma, de 14 de outubro de 1893) –, o Ministério Público seguiu integrando o Poder Judiciário, com as atribuições de representação dos interesses da Justiça e do Estado (a reforma suprimiu a menção aos interesses da sociedade, do art. 69, do texto original, além de inverter a ordem dos dois outros, para consignar por primeiro o interesse da Justiça, seguido depois do interesse do Estado).

Embora subordinado ainda ao Poder Executivo, quanto ao provimento dos seus cargos, o MP já passa a assumir, entretanto, contorno institucional, com alusão à sua organização hierárquica e à discriminação de suas funções mediante lei própria a ser editada. Ora, essa lei especial é a da organização e divisão judiciária do Estado, de 21 de maio de 1892, que viria reservar ao Ministério Público todo um capítulo (Título IV, Capítulo único, arts. 70º e 81º), dispondo sobre os critérios para a escolha do procurador-geral e relativos às nomeações e atribuições dos promotores e adjuntos.

Há aqui, porém, um particular que merece registro, seja o que estabelece que o cargo de procurador-geral é de livre nomeação do chefe do Poder Executivo. Fica então o Ministério Público jungido a dois poderes: ao Executivo de um lado, para o preenchimento dos seus cargos e a defesa dos interesses do Estado; e, da outra banda, ao Judiciário, na direção dos atos de sua administração interna.

Preceito igual ainda vigoraria com a Lei Judiciária de 1896 (Lei nº 191, de 14 de fevereiro de 1896, art. 104), e só vai reverter com a lei e essa situação insólita só vai reverter com a Lei nº 281, de 25 de julho de 1898, que no seu artigo 1º estatuiu que o cargo de procurador-geral só poderá ser exercido “por um cidadão graduado em direito ou de notória capacidade, que seja estranho ao Tribunal”. E assim vai se manter até o fim do século.

Em resumo: esse o esboço do Ministério Público do nosso primeiro período republicano. Uma instituição frágil, que se ressente, sobretudo, de sua subordinação ao Executivo, embora já apareçam sinais do seu esforço para a conquista de maior independência e estabilidade dos seus agentes.

O Estado do Paraná tem no início 14 comarcas e 20 termos, além dos distritos que vão sendo criados pelas administrações municipais. O promotor atua na sede da comarca e o adjunto de promotor nos termos. Ambos são bacharéis em Direito, mas os vencimentos do promotor correspondem a pouco mais da metade do ganho de um juiz, em média. O adjunto só percebe cerca de 40% da remuneração do promotor. Ambos só se mantém no cargo à discrição do Executivo e não gozam férias.

Esses, em traços largos, o perfil do Ministério Público nessa primeira quadra da República. Estamos bem longe, portanto, da imagem do parquet atual, mas esse é o caminho de volta que temos de percorrer para resgatar a memória da instituição e podermos acompanhar as etapas do seu desenvolvimento e do seu papel principal na consecução da obra da justiça e defesa da ordem pública dos interesses sociais e individuais indisponíveis.


Nota do Memorial

1. José Antônio Pimenta Bueno.