Francisco de Azevedo Macedo, Procurador-Geral

25/01/2010 | Por Rui Cavallin Pinto


”Bem digo eu que, para assentar mão no feitio de leis, preciso é ter algum hábito de as menear”
(Rui Barbosa, Réplica, 2º volume, p. 190, § 94).
 

A seu tempo, Francisco de Azevedo Macedo foi em nosso estado o jurista de mais ampla visão do Direito, além de ser dotado de incomparável disposição de trabalho, que o punha sempre pronto para assumir tarefas que, pelas suas proporções, muito poucos se disporiam a enfrentar. Mais que jurista ou legislador ordinário, Azevedo Macedo foi sobretudo codificador, revelando uma particular vocação para sistematizar normas de organização e conduta social, como ocorreu com os projetos do Código de Processo Civil e Criminal, ambos fruto de sua contribuição pessoal; o Código de Posturas do município de Curitiba; o Código de Ensino; sua proposta de reforma constitucional de 1927; a Lei de Organização Judiciária de 1913, assim como participou também da elaboração do estatuto de Universidade do Paraná e o regimento interno do Ginásio Paranaense, em cujos estabelecimentos tradicionais foi professor emérito, além da edição de importantes leis do Estado, inclusive sobre terras. Foi nomeado procurador-geral pelo então governador José Pereira dos Santos Andrade, em 4 de agosto de 1898, pouco depois de completar 26 anos de idade, e permaneceu à frente do Ministério Público paranaense por quase 1 ano e meio, até sua exoneração em 31 de janeiro de 1900, quando da recondução do governador Xavier da Silva. É ele quem conta como esse episódio aconteceu, lembrando que na ocasião se achava na redação do jornal “A República”, quando dele se aproximou um soldado de polícia, anunciando que trazia um recado do secretário da fazenda, coronel Luiz Antonio Xavier, em que o governador pedia sua presença urgente no palácio do governo. Levado em seguida a Santos Andrade. Este logo lhe antecipou sua escolha para procurador-geral, explicando que, pela nova lei judiciária o governo estava impedido de escolher para a chefia do Ministério Público qualquer dos desembargadores, como antes. Doravante tinha que ser pessoa estranha à composição do Tribunal. Assim, de concordância com seu secretário Luiz Xavier, essa escolha recaíra sobre sua pessoa, não só porque reunia as condições de notório saber exigidas para o cargo, como por se tratar de pessoa da imediata confiança do governo.

Azevedo Macedo conta que ainda pretextou: “mas não será cedo para mim?”, invocando certamente sua pouca idade. Por fim concordou, mas, como era do seu caráter, recomendou que tudo fosse feito de modo discreto e na condição de interino, para poder “descalçar a bota quando ela o apertasse”. A esse tempo o território paranaense estava dividido em 11 comarcas e 22 termos (a lei n. 81/96 suprimira as recentes comarcas de Campo Largo, Rio Negro, Tibagi e Serro Azul). Em cada sede de comarca havia um promotor, e em cada termo um adjunto de promotor, ambos graduados em Direito, ou, na falta de quem tivesse o grau, bastava o pretendente contar com 21 anos de idade e preencher as “necessárias condições”.

A Procuradoria-Geral funcionava no próprio prédio do Tribunal (então Superior Tribunal de Justiça), situado ao lado do Teatro São Teodoro, na antiga Rua da Assembleia (hoje Dr. Muricy), esquina da Travessa da Assembleia (atual Rua Cândido Lopes), onde atualmente se encontra a Biblioteca Pública do Estado. Anteriormente o Ministério Público fora dirigido por desembargadores, cuja subordinação direta ao Tribunal o novel procurador atribuiu a causa do desmazelo em que a encontrou ao assumi-la, desprovida de todo recurso material e de pessoal, que permitisse mantê-la com a aparência, pelo menos, de uma “repartição independente”. Azevedo Macedo a princípio tentou dispor da colaboração do secretário do Tribunal, mas este logo lhe fez ver que, pelo art. 68, letra “d”, da lei judiciária (lei n. 191/96) só lhe incumbia expedir as ordens e postar a correspondência oficial do procurador-geral, nada mais. E mesmo esse encargo veio a ser suprimido pela lei judiciária seguinte, nº 322, de 8 de maio de 1899. Assim, a todo tempo, Azevedo Macedo assumiu sozinho as atribuições da condução do Parquet estadual, embora pleiteasse o auxílio de pelo menos um “amanuense”, a exemplo do procurador fiscal dos feitos da fazenda, que “mesmo sem tanta necessidade”, contava com a colaboração de um oficial solicitador. A despeito dessas dificuldades, porém, Macedo passou a assumir sozinho o desempenho da chefia da corporação estadual, que incluía a responsabilidade administrativa da instituição, a promoção da justiça pública, por si e seus agentes, oficiando em todos os recursos do procedimento criminal e nas causas em que houvesse interesse dos hipossuficientes, devendo assumir também a curadoria dos feitos relativos às massas falidas. Cumpria ainda ao procurador-geral intervir em todas as causas e negócios da fazenda pública e da soberania do estado, ou em que fossem interessadas as próprias municipalidades. Amplas atribuições a que se aplicou com grande empenho, registrando em relatório que durante seu mandato, impetrou um só habeas corpus, mas proferiu doze pareceres em outros writs semelhantes, bem como oficiou em vinte e seis recursos de apelação criminal, além de quinze recursos cíveis, tanto agravos como apelações, bem como interveio como curador em processos do interesse de órfãos e incapazes.

Também atuou em três recursos de divórcio e em outros cinco de falência. Na área criminal propôs perante o Tribunal Superior duas denúncias contra juízes de direito, além de dispor de provas suficientes para seu sucessor denunciar o de Ponta Grossa, alegando que nesse particular também já havia se manifestado em favor da impronúncia do juiz da comarca da Lapa, por considerar insuficientes as provas apresentadas contra ele. Cumprindo outras atribuições de seu cargo disse ter acompanhado as decisões proferidas em favor do Estado, junto a seção estadual da Justiça Federal, e, naquela que lhe foi desfavorável, interpôs com sucesso exceção de incompetência. Relativamente às disputas sobre a legitimação, divisão e demarcação de terras consideradas públicas, forneceu instruções para o procedimento dos promotores das respectivas comarcas, para que acompanhassem os feitos e recorressem das decisões contrárias aos interesses e o patrimônio do Estado. Suscitou ainda conflito positivo de jurisdição em razão de intervenção do próprio Ministério da Guerra em processo criminal findo, recusando entregar o alferes João Epaminondas Jambo, condenado a 28 anos de prisão simples, por crime de homicídio. Porém só a interposição do conflito, foi suficiente, por si, para convencer o Ministério de sua inteira procedência, antes mesmo que dele conhecesse o Supremo Tribunal Federal. Ainda mais: o relatório oferecido por Azevedo Macedo ao deixar o cargo, registra também inúmeras providências adotadas durante sua gestão junto aos membros do Parquet, entre as quais reproduz as respostas dadas a consulta de promotores e até de particulares, relativas, de um lado, ao desempenho funcional, e de outro, entre muitas, o parecer oferecido ao padre Vicente Guaudiane, negando validade oficial às certidões e atestados extraídos dos livros paroquiais, cujo tema acabou se convertendo em polêmica de imprensa e levou seu autor a divulgá-lo em publicação de circulação local. Ainda, quanto às consultas particulares, ofereceu valioso estudo versando sobre a natureza jurídica das colônias militares instaladas em território estadual, e a competência dos estados e municípios de tributarem seus produtos e seu comércio. Por fim, tentou organizar um quadro estatístico dos delitos e delinquentes do Estado, remetendo a todos os membros do Ministério Público modelos impressos de memoriais, mapas e fichas individuais, cujo resultado, embora só atendido em parte, serviu, no entanto, para ilustrar seu relatório final. Enfim, todo esse desempenho à testa da Procuradoria-Geral deixou não só a marca de sua eficiência pessoal e vocação de trabalho, como também ganhou destaque pelo esmero que pôs nos seus pareceres, de redação sempre singela, mas cuidada e armada de sólida argumentação e bom forro da doutrina mais atual. E há ainda uma outra antecipação que merece ressalto, pois já a esse tempo Azevedo Macedo cogitou e se pôs a registrar em livro próprio todos os seus pareceres e ofícios, com o propósito de servirem a seu sucessor, como modelo e organização de um arquivo dos atos da instituição. Mas, de todas as contribuições que deu ao Ministério Público do seu tempo, uma das mais importantes foi certamente a de seus “Apontamentos sobre o Ministério Público no Paraná”, um opúsculo de cerca de 30 páginas, que publicou ao deixar o cargo, em que faz uma ampla resenha histórica das origens e atualidade do Ministério Público, suas fontes e organização no direito pátrio e em nosso Estado. Uma contribuição valiosa e inédita para seu tempo, não só porque traça um amplo espectro da corporação e seus fundamentos institucionais, como porque reivindica uma condição de maior dignidade e independência na promoção da ordem jurídica e da justiça pública, através da defesa da sociedade e a tutela dos seus dependentes. Ora, tal como vimos anteriormente, sua condução à chefia do Ministério Público se deveu à Lei nº 281, editada naquele ano, que determinava que o cargo de procurador-geral passaria a ser exercido doravante por cidadão estranho ao Tribunal, graduado em direito ou de notória capacidade; critério que passou a sustentar alegando que a entrega da direção do Ministério Público a um membro do Poder Judiciário constituía um embaraço gravíssimo à independência do órgão ministerial, em face da incompatibilidade natural do exercício simultâneo de ambas as funções. Igualmente defendera também que a destinação de um dos desembargadores para exercer o cargo de procurador-geral implicava em desfalcar o Tribunal de um dos seus magistrados, pois eram apenas cinco, reduzindo ainda mais a amplitude da decisão colegiada.

Na verdade, após Azevedo Macedo deixar o cargo, a lei judiciária que se seguiu, seja a de nº 322, de 8.5.1899, já não fez menção ao impedimento dos desembargadores, senão adota uma definição ampla e enunciativa de quem o governador poderia escolher para o cargo de procurador-geral, incluindo os próprios desembargadores; os juízes, mesmo os avulsos, uma vez em disponibilidade; os bacharéis ou doutores em Direito, desde que reunissem os requisitos de integridade e moralidade do art. 59, da Lei 322/99, mais quatro anos de exercício do cargo, dispensados, porém, de habilitação em concurso, de que tratava a mencionada lei; e, ainda qualquer dos cidadãos, de notória capacidade e moralidade, mesmo não graduados em Direito (art. 1º e seus incisos, da Lei nº 420, de 3.4.1901). E disso resultou que, daí em diante até a nomeação de Brasil Pinheiro Machado, em 1939 (a partir de quando o preenchimento do cargo se desvinculou definitivamente do Poder Judiciário), entre todos os 23 diferentes procuradores-gerais que se seguiram, só 7 deles foram advogados, 11 eram juízes e 5 outros desembargadores. Porém, entre juízes e advogados, tantas vezes a Procuradoria-Geral serviu de simples estágio para que o candidato ascendesse em seguida à condição de desembargador, como ocorreu com João Baptista da Costa Carvalho Filho, Joaquim Ignácio Dantas Ribeiro, Antonio Martins Franco, Arthur da Silva Leme, Isaías Beviláqua, Hugo Gutierrez Simas e outros.

Outra bandeira levantada por Azevedo Macedo foi a do assento do procurador-geral junto ao Tribunal. Até então não havia diferença de tratamento, quando o procurador-geral era também desembargador e se assentava ao lado dos demais membros nas sessões de julgamento. Mas, quando já não era da casa, o chefe do Ministério Público foi colocado num plano inferior ao dos desembargadores, em nível do assento raso do secretário e ao lado dele. Para Azevedo Macedo esse desnível feria a honorabilidade do cargo e contrariava o que até então dispunham as leis de organização judiciária do Estado, seja a de nº 191 de 1896, que confiou o cargo de procurador-geral a um dos desembargadores com assento no Tribunal; seja a de nº 284, de 1898. Ao delegar essa representação a pessoa estranha ao Tribunal, determinou que sua função era exercida junto ao Tribunal e com os predicamentos de desembargador. Porém, invocando as leis judiciárias de São Paulo, Alagoas e Amazonas, que consignavam expressamente que o procurador-geral “terá assento no Tribunal de Justiça”, ou “no Superior Tribunal” (conforme a organização judiciária local), bem como, servindo-se dos mesmos fundamentos da reclamação formulada nesse intuito pelo procurador-geral do Rio de Janeiro, Moscoso Júnior, e prontamente acolhida pelo legislativo daquele Estado, o bravo procurador Azevedo Macedo fez ver também ao nosso governador que, por todos os títulos, o assento devido ao procurador-geral junto ao Superior Tribunal “é na mesa de julgamento, junto à corporação de julgadores”. A reivindicação vai então aparecer consagrada já na Lei nº 420/1901, que no art. 3º trata o procurador-geral como primeiro representante do Ministério Público e “parte complementar do Superior Tribunal de Justiça do Estado”, em razão do que, “tomará assento à mesa das sessões deste Tribunal, ocupando, quando desembargador, a cadeira que como tal lhe competir, e quando não, a que se seguir e em que tem assento o desembargador mais moderno”. Assim, por empenho de Azevedo Macedo, afinal se concedeu ao representante do órgão ministerial no Tribunal o lugar que por posto e dignidade lhe pertencia.

Ainda noutro ponto, a atuação do laborioso procurador-geral revelou sua visão superior da instituição, empenhando-se não só em assegurar sua independência de juízo, como a presença de uma organização hierárquica própria. Assim, considerou “um erro que temos de combater” a presunção de alguns juízes de “que são superiores hierárquicos dos promotores” e então traz a comento o episódio de Guarapuava em que, diante da manifestação do curador dos órfãos da comarca, lamentando a injustificável morosidade da tomada de contas de um tutelado, o juiz passa a lhe fazer “acre censura”, para encerrar sua manifestação proclamando “que é seu superior hierárquico”. Ora, sustenta Macedo os “juizes tanto de primeira, como de segunda instância, não têm entre nós, como não têm na França, direito de repreender ou a chamar ao cumprimento de seus deveres o Oficial do Ministério Público, cabendo esse direito ao Governo, relativamente ao Procurador e este, relativamente aos Promotores”.

Maior reação ainda lhe produziu a Lei nº 322/1900, ao consignar que as penas disciplinares de advertência e censura, multa e suspensão seriam impostas: art. 254 e 255, letra “c”: aos promotores públicos, pelo procurador-geral de justiça e pelos juízes de Direito; e “d”: aos adjuntos, pelo procurador-geral de justiça, pelos juízes de Direito e pelos juízes municipais. Como se tratava de lei posterior ao exercício do seu cargo, a nota foi feita por aditamento à redação dos seus “Apontamentos...” assegurando que por ela ficou “desnaturada a instituição, que se torna subalterna hierárquica dos juízes e tribunais”. E conclui indignado: “Retrogradamos em vez de progredir!”. Por outro cariz, ainda, reage ao dispositivo da nova lei judiciária que obriga o procurador-geral a incluir no seu relatório anual das atividades do Ministério Público uma exposição circunstanciada “sobre o estado da administração da justiça”, apontando “os erros, abusos e incoerências que observar na jurisprudência do Superior Tribunal, indicando as providências que convém ser adotadas” (art. 143, letra “q”, da Lei nº 322/1900). Seu protesto foi mais uma vez incisivo: “Demos um passo para traz!”, pois, em termos constitucionais, o dispositivo é letra morta, desprovido de efeito prático, porquanto para seu efetivo cumprimento é preciso que o Poder Executivo se arvore em ditador e assuma o Poder Judiciário. Apontar erros, abusos e incoerência dos desembargadores e recomendar providências corretivas ao governo? Tudo isso lhe pareceu uma heresia jurídica. Seria confirmar o papel subalterno que Carcano e Matirolo atribuíram ao Ministério Público, acusado de ser produto da invenção da monarquia francesa para manter sottomano a magistratura. A bem de ver, em tão pouco tempo Azevedo Macedo fez muito em prol da instituição nascente do Ministério Público estadual, não só por procurar dotá-la de organização própria, como por estimular o desempenho e a eficiência dos seus agentes e promover a superioridade de sua destinação. Foi homem de pequena estatura, barba à nazareno e modéstia congênita. Embora dotado de grande mansidão na fala e nos modos, quando o tema era de Direito, se convertia em jurista combatente, de visão ampla, aguda e vigilante na defesa dos propósitos e da dignidade da lei, mas sem espasmos ou exasperação de personalidade. Seu estilo corria claro e ameno, tanto quanto seguro e profundo. Umas tantas vezes ficou sozinho por culpa de suas convicções, mas nem por isso se abateu ou cedeu à solitude. Viveu uma vida marcada por intenso trabalho, a serviço do Direito e do esforço de recriá-lo, desde a elaboração de um mero estatuto de escola a um repositório constitucional de normas político-sociais. E nisso foi nosso grande codificador. No lar, foi marido extremoso e pai amantíssimo, fora dele, cidadão prestante e espírito que fez da caridade pública não um serviço religioso, mas obra divina. Como procurador-geral foi líder pioneiro, tanto pelas ideias que difundiu como pelo esforço de antecipar um projeto do Ministério Público acima da etapa do seu tempo e dos limites do seu meio.

E, por tudo isso, enfim, e quanto mais puder-se-ia ainda acrescentar, Francisco Ribeiro de Azevedo Macedo é merecedor dessa lembrança, e de figurar com destaque na galeria dos homens mais representativos da instituição do Ministério Público do nosso Estado.


* Para saber mais sobre Francisco Ribeiro de Azevedo Macedo, clique aqui.