Dos crimes insolúveis, ou quase...
out/2013 | Por Rui Cavallin Pinto
As crônicas de crimes são hoje do gosto popular, principalmente aquelas cuja solução é posta em dúvida ou a sentença nos parece injusta. Já fizemos registro de alguns deles do nosso repertório paranaense, como os de Corina Portugal (1889), em Ponta Grossa; do padre Pinto (1900), na Lapa; e Egydio Pilotto (1930), em Curitiba, para citar os mais antigos. Nosso René Dotti também editou livro clássico, rememorando capítulos da criminalidade nacional e até internacional, como o caso do desembargador Visgueiro, dos irmãos Naves, de Aída Cury e do próprio processo Dreyfus, além de tantos outros de igual ressonância.
Recentemente, Philippe Charlier incluiu na sua vasta bibliografia “Os Segredos dos Grandes Crimes da História”, uma edição francesa com episódios históricos que partem de Roma de César, mas se concentram sobre alguns personagens históricos da monarquia europeia quando grassavam todas as formas de criminalidade impune e eram precários os recursos médico-legais de identificação das lesões e eram poucos os recursos para identificar as circunstâncias do crime e poder punir seus autores. Philippe Charlier é médico, antropólogo e cientista forense do Hospital Universitário Poincaré, de Paris. Uma celebridade nacional, a quem os jornalistas até chamam de “Indiana Jones dos cemitérios”. Nos tempos a que se reporta Charlier, não havia microscópio, nem ciência toxicológica. Tampouco radiologia ou se realizavam testes de DNA, coisa dos séculos adiante. O livro faz então um breve resumo do desenvolvimento histórico da medicina legal, oferecendo umas poucas notícias das leis do Egito e da Suméria que previam a realização do exame externo das vítimas, como é natural, para justificar as punições. Menciona também que, bem à frente, existem referências no Código de Justiniano, do VI século, a médicos servindo como auxiliares da justiça.
Mas, foi no século XVI, com os “Livros de Cirurgia” de Ambroise Paré (1575), que se estabeleceram os primeiros fundamentos institucionais e científicos da medicina legal moderna, e, finalmente, em 1794, a França instituiu a cadeira de Medicina Legal para todas as faculdades de medicina do país. Até então, o combate ao crime seguia um caminho sinuoso e inspirado no simples bom senso, devassando veredas palacianas ou câmaras secretas, onde se urdiam complôs e se sucediam estrangulamentos. O veneno era expediente comum no tempo, para eliminar desafetos ou abrir caminho para o poder. Em outubro de 1587 morreu Francisco I, grão-duque da Toscana. Ele e sua jovem mulher Bianca Capelli, após onze dias de agonia. O suspeito de envenená-lo era seu irmão, o cardeal Ferdinando. Este alegou que o rei certamente teria morrido por abuso alimentar, como era comum dos seus hábitos. A autópsia que se fez em seguida não acusou nenhum sinal de crime e o par foi enterrado em funerais suntuosos. Porém, as vísceras foram embalsamadas e guardadas em jarras de cerâmica. Bem mais tarde, em 1937, o médico Feynes e outros ainda, submeteram esse material à luz de conhecimentos atuais da medicina e confirmaram o envenenamento do casal por arsênico, um veneno bem conhecido em Florença, sobretudo na corte dos Médicis.
Em 1718, o rei da Suécia, Carlos XII foi morto durante o cerco da fortaleza dinamarquesa de Fredriksen. Era noite e o tiro foi um só, atingindo o crânio do soberano de 36 anos. As hostilidades estavam temporariamente suspensas, numa guerra de 18 anos, com a Dinamarca e a Rússia. A pergunta que surgiu foi: o projétil fatal era do inimigo ou de conspiradores do reino? Ninguém soube dizer. Mas a morte do rei provocou profundas mudanças internas e externas no país e disputas pelo poder, que permitiram supor eventuais ligações com a morte surpreendente do soberano. O regicídio foi, porém, recentemente retomado por médicos e expertos em balística, que não só reconstituíram as circunstâncias do tiro, como as características particulares do ferimento produzido e as peculiaridades do projétil usado, com o chumbo encapsulado num envoltório de ferro ou prata, que não era próprio do usado pelo exército danês. Enfim os peritos levaram tão longe a perícia que tanto denunciaram a insurreição interna no reino, como identificaram o próprio fabricante do projétil: Carl Cronsted, comandante da artilharia do seu país e a maior autoridade de então em armamentos e balística.
O livro traz diversas outras memórias de crimes de grande notoriedade, sempre marcados pela dificuldade de caracterizá-los e identificar seus autores, ou então se prestam para serem contemplados com a impunidade ou exaltados, por efeito de forças políticas ou de toda sorte de preconceitos. Assim, a morte de São Benoit de Nursie, fundador da ordem dos Beneditinos; de Santo Thomaz Becket; João I, o João sem Medo, duque de Borgonha; Henrique III de Valois; Carlo Gesualdo; Henrique IV de Bourbon; do escritor Zola; o político e jornalista Jean Jaurès, de L’Humanité. Ramon Ivanovich Lopes, assassino de Trotski, a serviço da NKVD1 e à ordem de Stalin, cumpriu 20 anos de prisão no México, mas, ao sair da prisão voltou à Rússia, para receber a medalha de herói da União Soviética e, com sua morte, repousar no cemitério de Kountsevo, em Moscou. Assim os caminhos da justiça...
1. Narodniy Komissariat Vnutrennikh Diel – Comissariado do Povo para Assuntos Internos.