De que tribo indígena você descende?

Rui Cavallin Pinto
Publicação: 2/6/2022

Alagoas é uma das nossas unidades federativas de menor extensão e população1. Acusa também a maior taxa nacional de analfabetismo e mortalidade infantil2.

 Porém, se orgulha de contar entre seus filhos com uma ampla galeria de meia centena de figuras ilustres da história política e militar do seu Estado, com projeção não só no cenário cultural nacional, mas até internacional, como no campo da vida política ou das atividades literárias e de todas as ciências e artes.

Assim, essa conta inclui o Império (1822-1889), com a presença dos alagoanos Barão de Penedo e Visconde de Inhaúma. A proclamação da República (1889), por sua vez, foi obra também da implantação e da consolidação de dois dos seus maiores conterrâneos, Marechal Deodoro e Floriano Peixoto.

Outros tantos mais se incluem nas nossas letras, como Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Artur Ramos, Aureliano Tavares Bastos, Jorge de Lima, políticos da projeção e porte de Góes Monteiro e Fernando Collor de Mello, jurista de projeção mundial como Pontes de Miranda3, e ainda o matemático Manfredo do Carmo, doutor em matemática por Berkeley, da Califórnia, que teve livros traduzidos em alemão, russo e chinês. Nise Magalhães da Silveira, médica psiquiatra, discípula de Carl Jung, revolucionou o tratamento mental do Brasil do século XX.

Ora, com todo este plantel superior, Fábio Lins de Lessa Carvalho, professor e Procurador-Geral do Estado, editou, em 2016 seu “Atrevidos Caetés”, oferecendo meia centena de crônicas e entrevistas de alagoanos com figuras de destaque do cenário mundial, servindo de alegoria o episódio histórico da tribo dos caetés, da língua tupi, pelo sacrifício antropofágico do bispo Pires Sardinha, o primeiro do Brasil e sua comitiva, no naufrágio de 1556 da caravela portuguesa, na foz do rio Coruripe, no litoral de Alagoas.

Minha impressão inicial foi, naturalmente, a de que, por um lado, seu intento foi o de exibir o expressivo contingente de seus conterrâneos, mesmo a despeito das dificuldades materiais do desenvolvimento do seu Estado, bem como, levado pelo mesmo, mas ainda maior, procura estimular as gerações mais jovens dos seus leitores, a imitar o exemplo do espírito guerreiro do natural da terra para demonstrar que conservam o mesmo vigor dos caetés, e de sua ousadia, no confronto ou na disputa da posse da sua terra, mesmo em frente aos mais poderosos que eles.

A iniciativa de Fábio Lins me induziu (ou foi mera coincidência?) a imitá-lo e a exibir igualmente sessenta dos nossos exemplos pessoais ou momentos representativos de nossa vida cultural ou social, através do modelo emblemático de um natural da terra, na figura também de um índio, mas que guardasse bastante semelhança com o temperamento, a força de vontade e a consciência histórica do paranaense, revelados na construção do seu destino e do futuro do seu país.

Ora, o Paraná ostenta expressiva distância de Alagoas, posto que, a seu contrário, detém um território maior, além de uma população de número superior, e que se sobrepõe com índices maiores de desenvolvimento material e condições sociais de vida. Mas, a despeito desses aparentes benefícios o Paraná se ressente também, já há algum tempo, de sofrer manifestações de baixa estima e confiança dos seus próprios filhos, em setores de maior visibilidade, como os de suas próprias letras e lideranças sociais, como ocorreu com o anátema de Pinheiro Machado, na edição da revista “A Ordem”, de 1930, em que afirmou que o Paraná era um estado sem relevo e sem identidade. Por sua vez, o jornalista pernambucano Fernando Pessoa Ferreira retribuiu o acolhimento recebido de nossa cidade, dizendo que Curitiba era um exílio e o paranaense uma tribo que se alimenta de pinhões e seu inverno vai de janeiro a dezembro, no resto do ano chove. Para Dalton Trevisan, que é de casa, quando vinha a Curitiba costumava anunciar em francês: je vais à Curitiba pour m’emmerder.

O jornalista e acadêmico Luiz Geraldo Mazza, por sua vez, sustenta que o paranaense se ressente desde o Império de um irreprimível pendor autofágico, dissolvente e desagregador de se consumir, passando pelas oligarquias dos Munhoz da Rocha e Camargos e seguindo pela fase hegemônica de Manoel Ribas e Getúlio Vargas até o lupianismo e sua reviravolta com Ney Braga.

Na verdade e até pelo contrário, a autofagia é hoje prêmio Nobel de medicina de 2016, pelo qual foi laureado o médico japonês Yoshinori Ohsumi, por criar um processo de limpeza e “reciclagem” das células humanas.

Mas, posto assim, e a troco de escolher um símbolo humano e original que valha, por igual, para representar o “ethos” paranaense, supomos então que possamos nos servir, por igual alegoria, dos índios carijós do nosso litoral, aparentados dos guaranis e que ocupavam toda a costa meridional do Brasil.

Foram considerados “os melhores gentios da costa”, pelos primeiros povoadores, todos eles trabalhadores dóceis e bem-intencionados, guardando semelhança, à primeira vista, com o modelo e a visão preponderante do próprio paranaense e aos olhos alheios, sobretudo pela nossa formação histórica, em que nos fez crescer e sermos povoados através de uma política consciente, de confirmação do nosso território e sua ocupação humana, mediante projetos internacionais de colonização. Não tivemos guerra de agressão, mas de defesa de nosso território, apesar das ambições vizinhas e de suas lesões (até estrangeiras), confirmados por acordos e o acatamento a decisões judiciais de recomposição e de domínio.

Não temos, portanto, modelo de agressão, exclusão ou hostilidade dirigida contra nossos vizinhos ou outros, senão de acolhimento geral e confraternização. Os caetés são um modelo de guerra e hostilidade, que ficaram conhecidos como “inimigos da civilização”, para quem construir é preciso resistir e se opor. Diversamente do símbolo do nosso carijó, para quem a lição é a de seguir a linha do seu próprio perfil social e histórico, pois o progresso é tanto mais uma conquista do nosso próprio esforço e persistência. A riqueza para ser verdadeira e segura deve ter o poder de se multiplicar para se converter em benefício e proveito do maior número.

Eis aqui, então, nosso modelo alegórico da semelhança da nossa origem natural, virtual, por certo, mas tirado de uma mesma terra, onde já existia a seu tempo, e as circunstâncias fizeram completar a fisionomia que hoje semelha ter.


1. Alagoas ocupa uma área de 27.843,295 km2, sendo maior que o Sergipe (21.925,424km2) e o Distrito Federal (5.760,783km2) apenas. Segundo estimativa do IBGE de 2021, a população alagoana é de 3.365.351 pessoas, estando na 18º posição de Estado mais populoso.

2. Em 2019, segundo o IBGE, o Alagoas ocupava a primeira posição de analfabetismo no país, com uma taxa de 17,1%. Já a mortalidade infantil, para o mesmo período, apresentou índice de 14,4 crianças mortas a cada 1000 nascimentos vivos.

3. Confira a história de quando Albert Einstein vistou Pontes de Miranda aqui e a acusação de plágio que Pontes de Miranda sofreu clicando aqui.

4. Tradução livre do francês: eu vou para Curitiba para ficar entediado.