Das coxias do Ministério Público – III

21/03/2023 | Por Rui Cavallin Pinto

Nesse tempo eu era assessor da Corregedoria-Geral do MP. E foi num de seus belos dias que chegou um jovem ao balcão de atendimento do gabinete e me perguntou diretamente:

– Doutor, quero saber por quê fui reprovado no último concurso do Ministério Público.

– Ora, respondi com certo acento benevolente, certamente porque você deixou de responder alguma questão da prova...

– Não, de modo nenhum doutor, retrucou meu interlocutor.

– Pelo contrário, tirei 10 em Direito Constitucional, e arrematou severo:

– Como é que alguém que tira 10 na prova pode ser reprovado?

Eu até revelei certa concordância, mas completei:

– Mas como é que você sabe que tirou 10 na prova?

– Ora, redarguiu, foi o próprio examinador, Doutor Jerônimo Maranhão, procurador-geral, que me confirmou, completou e prosseguiu:

– Depois da arguição e das respostas que dei, ele bateu com a mão em meu ombro, sorriu e concluiu:

– Vá embora rapaz. Comigo você tem 10! ...

E o moço ainda pôs mais reforço no argumento, alegando que o Direito Constitucional era a parte jurídica de sua maior predileção. E, além disso, era bacharel em Ciências Sociais, e chegou ao ponto em que proclamou:

– Modéstia à parte, doutor, de Direito Constitucional eu entendo! ...

E então senti que sua alegação me tocou... Poderia ter havido um equívoco, realmente, observei para mim mesmo. Então prometi averiguar e, já à saída do moço pedi o registro das notas do concurso. Percorri a relação dos candidatos e os valores conferidos. Lá estava ele mesmo: o nome e o grau da nota: em Direito Constitucional, era 1,0. Apenas UM, um minúsculo HUM!

Conjecturei... e conclui: e não poderia ter ocorrido um engano? Um lapsus calami? ... Ninguém está livre deles... Talvez a nota atribuída fosse mesmo o 10 alegado, mas o funcionário incumbido de anotá-la e transpô-la para o registro oficial acabou lançando 1,0 em vez de 10.

Ora, afinal e a bem de ver, a nota 10 é, na verdade, um tanto rara nesse tema de prova. Além disso, ele havia me passado a imagem do tapa no ombro, seguido do sorriso e da declaração pública da nota 10. E, ainda, acima de tudo, o homem era o procurador-geral, o chefe da instituição ministerial e presidente da própria banca do concurso.

E essas ideia passaram a me intrigar... com a possibilidade de ter ocorrido mesmo uma injustiça, que me incumbia reparar...

Assim, à oportunidade, fui ao gabinete do procurador-geral e lhe expus minhas preocupações, sustentando a possibilidade de ter ocorrido algum engano que era preciso reparar...

Jerônimo Maranhão então me olhou com certo ar de ternura, como era próprio dele, pôs a mão no meu ombro, olhos no olhos, sorriu e disse no seu natural:

– Fique tranquilo, meu caro. Nós nunca devemos perder a oportunidade de estimular os mais jovens. É obrigação de nós mais velhos, diante das dificuldade naturais da vida. Devemos achar um modo de que não percam a coragem de reagir, mesmo diante das maiores dificuldades.

E ficou assim, por isso mesmo...

Palavra, sempre fui devoto de Jerônimo de Albuquerque Maranhão, seja por sua rara inteligência e ampla generosidade, que conheci tão bem, dessa vez, porém, deixei o gabinete com a impressão de que, mesmo a pretexto de um melhor propósito, o episódio me deixava um estranho ressaibo de que, não era por aí o caminho, certamente, pelo risco provável de que os estímulos pretendidos podiam até redundar numa aparente e inevitável malvadeza...

NÃO BASTA VER...

O jovem bacharel fora nomeado promotor interino no interior, mas chegava à comarca sem qualquer prática do foro. Então lhe veio às mãos o primeiro processo que trazia o seguinte despacho do juiz: “Faça-se com vista ao promotor”. Com isso, o escrivão então estampara ali o carimbo: “Faço estes autos com vista do Doutor Promotor”.

O noviço folheou o processo conferiu o despacho e o carimbo e se perguntou, o que fazer?

O Código que tinha às mãos não lhe oferecia solução para o embaraço, nem encontrou resposta nos livros de que dispunha à mesa. Frente à dificuldade, lhe pareceu de melhor alvitre postar uma simples manifestação: “MM. Juiz: vi”, e fez devolver os autos ao magistrado. Para sua surpresa, entretanto, os autos foram e voltaram, agora, porém, com um despacho ainda mais embaraçoso: “Diga o que viu”...

O QUE É QUE FAZ VOCÊ RIR?

Há algum tempo atrás Afrânio Peixoto proferiu uma belíssima conferência sobre o humor na literatura nacional. O genial baiano então explicou que o riso comum é, em geral, provocado pela súbita interrupção de uma sequência lógica de um determinado acontecimento a que estávamos presos pela atenção.

Isso serve, então, de introdução ao que aconteceu em Umuarama, há algum tempo, numa das audiências criminais da comarca.

Quem conta o episódio foi o então colega Ralph Luiz Sabino dos Santos, promotor presente à sessão instrutória de julgamento. Cuidava-se de ouvir as testemunhas de um crime de tóxico, envolvendo traficantes tidos como pessoas de alta periculosidade. Os réus vieram algemados e escoltados por forte aparato policial. Os militares e agentes civis portavam armas pesadas e ocuparam toda a sala de audiência e o próprio acesso do fórum. O clima era de intensa expectativa. A tensão era geral e os trabalhos seguiam acompanhados de respeitosa atenção de todos os presentes.

Subitamente, porém (não se soube como...), adentrou a sala um homem miúdo, jeito de simplório, carregando a tiracolo uma sacola de algodão. Internou-se entre os policiais armados, passou pelos advogados e o promotor, para surgir junto à mesa do juiz.

Ai então, para surpresa geral, tirou da sacola uma lata comum e perguntou ao magistrado:

– Quer comprar “mer”, seu moço? ...

O juiz franziu o sobrolho, lançou um olhar fulminante sobre o intruso e vociferou:

– Tirem este homem daqui! Quem deixou este homem entrar? ...

Houve então uma rápida movimentação de serventuários e policiais, e o homem foi conduzido para fora da sala. Mas, mesmo assim não largou a lata e a pose simplória de vendedor de “mer”.

Na verdade, não houve risos. Pelo menos ninguém os ouviu. Talvez por respeito ao local e às circunstâncias, mas a passagem serve pelo menos para ilustrar a bela conferência de Afrânio Peixoto.