Curitiba Negra

11/08/2021 | Por Rui Cavallin Pinto

Em maio de 1988, durante as comemorações do primeiro centenário da Lei Áurea, da abolição da escravatura no Brasil, a Câmara Municipal de Curitiba prestou homenagem especial à participação da população afrodescendente, na vida e desenvolvimento da cidade, mediante a ereção de um pedestal, com placa de bronze, na Praça Santos Andrade, defronte o prédio da Universidade Federal, contendo a relação de 68 nomes de homens e mulheres de ascendência africana, os mais representativos de diferentes formas de expressão da vida comunitária, desde as mais humildes até as mais importantes da vida econômica e cultura da cidade.

A homenagem e a cerimônia resultaram, na verdade, de um trabalho conjunto da então vereadora Marlene Zanin e do cônsul-geral honorário do Senegal em Curitiba, Ozeil Moura dos Santos, que em 26 de maio daquele mesmo ano e sob a presidência do vereador Horácio Rodrigues Sobrinho descerraram a placa comemorativa da etnia negra, seguida de outras homenagens no Palácio de Cristal, do Círculo Militar.

Com o tempo, porém, a homenagem de uma simples placa passou a ser vista como uma manifestação tímida e pouco reconhecida da contribuição efetiva da população negra, em comparação com a que se prestou com o Memorial da Imigração Polonesa, ou o Ucraniano, e mesmo o Bosque Alemão, pois a dos negros passava despercebida do povo, das agências de turismo e do próprio governo.

 

Ilustração de placa com os nomes, na praça Santos Andrade, em Curitiba.
Placa com os nomes, praça Santos Andrade| Ilustração do autor

 

 

Foi então que, agora em junho de 2015, quando Ana Crhistina Vanali, advogada e vereadora, acompanhava um percurso turístico pelos principais pontos históricos da presença negra na cidade, diante do memorial comemorativo lhe ocorreu a ideia de promover o levantamento biográfico dos 68 personagens da placa, homens e mulheres, muitos deles desconhecidos, outros tantos esquecidos ou de quem já não se tinha notícia do seu destino. Foram advogados, médicos, desembargadores, engenheiros, professoras, escritores e escritoras, atores e atrizes, artistas, militares, enfim, todos os que por seus méritos ou atividade pessoal contribuíram de alguma forma para o interesse comum da cidade e o seu desenvolvimento.

Mas, foi só a partir de 2017 que Ana Crhistina pôde se dispor a promover o resgate da vida e contribuição de cada um dos nominados da placa, empenhando-se então num trabalho amplo de pesquisa para a resenha biográfica de 68 personagens históricos da cidade, 30 deles já falecidos e de outros 8 não se tinha qualquer notícia. Contando com contribuição dela própria em 38 resenhas, além da participação de 15 outros colaboradores, todos professores e pós-graduandos, com destaque, para os professores Celso Fernando Claro de Oliveira, doutor em História, e Andrea Maila Voss Kominek, doutora e mestre em Sociologia, que assumem a autoria e edição do livro.

Com o título de “Os Nomes da Placa: A História e as histórias do monumento à Colônia Afro-brasileira de Curitiba”, de Ana Crhistina Vanali, Andrea Maila Voss Kominek e Celso Fernando Claro de Oliveira, com 552 páginas, o livro foi editado e distribuído pelo Sistema Fecomércio Sesc Senac PR, contendo ilustrações coloridas, com amplas resenhas, informações e bibliografias dos homenageados.

A primeira personalidade posta em destaque é a de João Pamphilo Velloso de D’Assunção, o “Nego Pamphilo”, advogado de grande prestígio e admiração, que não se ateve apenas à atividade forense, mas foi autor, com destaque, de obras jurídicas de doutrina e jurisprudência. Atuava na imprensa diária e em revistas nacionais, como também na gestão de cargos importantes da sociedade, como na Associação Comercial do Paraná, da qual foi presidente por 6 anos, além de figurar como fundador de nossas maiores entidades culturais, como o Centro de Letras do Paraná, a Academia de Letras e a Academia Paranaense de Letras. Homem de presença e gosto social, foi presidente também da Sociedade Thalia de 1927 a 1929.

Antenor Pamphilo dos Santos foi outro dos proeminentes afrodescendentes de maior destaque da nossa cidade. Nascido em Salvador (BA), veio muito jovem para o Paraná, onde se formou em farmácia e medicina e acabou professor catedrático da Universidade Federal do Paraná. Foi vereador e homem público de destaque na ciência e na política paranaense. Em 1948, foi prefeito interino de Curitiba, na licença do seu titular. Na sua aposentadoria, entre outras homenagens, recebeu a de professor emérito da UFPR.

No curso das imagens e resenhas, a obra oferece a participação da família baiana Pinto Rebouças, representada por dois dos irmãos apenas: Antônio, mais velho, e José, mais moço. Certamente, assim se comete grave injustiça. Primeiro, porque não são dois, mas três e incluem André, talvez o de maior participação na vida paranaense. Antônio foi engenheiro-chefe da Graciosa, participou do plano da ligação ferroviária Antonina-Curitiba e do projeto do Mato Grosso, mas em 1870 transferiu-se para o Rio de Janeiro e, mesmo depois, voltando em 1873, foi para a Companhia Paulista, na construção da estrada de ferro de Campinas a Limeira, e aí morreu de varíola, com só 35 anos de vida. André, por sua vez, além da construção da ferrovia Paranaguá-Curitiba, obra de reputação mundial, foi também um dos líderes da campanha nacional abolicionista, homem de grandes dotes de inteligência e dons criativos, teve seu nome e suas obras consagradas em toda parte do país. José Pinto Rebouças foi o irmão mais novo. Consta que o irmão Antônio foi seu tutor e orientador. Ocorre que José era 13 anos mais novo e, ao concluir seu curso de engenheiro (1874), Antônio já havia morrido. Não vejo razão, pois, para incluí-lo na homenagem da Câmara, nem “Nos Nomes da Placa”, omitindo-se injustamente a presença de André Rebouças.

Tantos outros, porém, merecem igual destaque e o nosso reconhecimento, pelo que deixaram de suas presenças e contribuíram para o sucesso e a prosperidade de nossa cidade. Tenho lembranças de alguns deles, como a dos irmãos do “Esquadrão da Morte”, com o Bananeiro, Ferreira e Janguinho, a melhor linha média do nosso futebol e minha alegria de torcedor adolescente daqueles idos. E tem também minha admiração pela Enedina Alves Marques, que conheci como a primeira engenheira civil negra do Estado. E tem ainda Odelair Rodrigues, atriz e cantora de nossas lembranças de rádio e televisão. Enfim, são muitos os homenageados e é pequeno o espaço que me resta para louvar a bela e justa iniciativa da placa da Câmara e do livro. A escravidão não foi uma nódoa histórica só nossa. Ela sucedeu em outros tantos países e cidades que, ao fim, converteram-se nas mais prósperas civilizações, assegurando a plenitude do direito de todos, e nos legando tanto a consciência da nossa identidade de origem comum, quanto a liberdade de poder cumprir o nosso próprio destino.