Câmara Leal: injusto abandono

23/11/2021 | Por Rui Cavallin Pinto

Antônio Luiz da Câmara Leal foi filho ilustre de São Paulo. Entre outros dotes de inteligência foi jornalista, poeta, músico e orador de fartos recursos. Mas, acima de tudo foi jurista de estirpe, por descendência paterna, produzindo obra extensa, que lhe granjeou renome nacional.

Natural de Taubaté1, em 1892, seu pai era advogado e professor de prestígio no Vale do Paraíba. Seu avô paterno, Luiz Francisco da Câmara Leal2, foi nomeado juiz de direito de Curitiba logo após a criação da Província do Paraná, em 18543, atuando posteriormente como chefe de polícia (1856-1860), vice-presidente da Província (1859-1860) e juiz de Direito dos Feitos da Fazenda da Província do Paraná (1864). Deixou, ainda, legado jurídico: “A Abolição da Escravatura sem Gravame para o Estado e prejuízo para o Senhor”, lido com interesse a seu tempo.

 

Câmara Leal.
Câmara Leal | Acervo do autor

 

 

O neto, Antônio Luiz, fez curso de humanidades em Itu4 e bacharelou-se pela Faculdade de Direito de São Paulo, em 1914. Classificado em 1º lugar no concurso de juiz substituto5 da primeira turma nomeada em 1922, atuou na magistratura até 1925, quando foi exonerado a pedido. Exerceu a advocacia na capital paulista, em Taubaté e em Mogi das Cruzes. Tinha pouco mais de 30 anos quando publicou seu “Manual Elementar de Direito Civil”, em quatro volumes, que foi, por muito tempo, o breviário dos acadêmicos da época. No tempo da dualidade do Direito Processual, produto da Constituição de 91, mal São Paulo deu à luz seu Código de Processo Civil e Comercial (Lei n.º 2.421/30), para vigorar a partir de julho daquele ano, ainda em abril, Câmara Leal antecipava seu massudo primeiro volume (750 páginas) dos seus “, Comentários...”, seguido de outros quatro de igual porte. 

Foram seus também os “Comentários ao Código de Processo Penal”, obra igualmente pioneira, publicada poucos meses depois da outorga do Codex de 1941

Nesse rol ainda se incluem obras do porte de “Teoria das Ações”, “Depoimento Pessoal” e a “Prescrição e Decadência” que, no juízo de Aguiar Dias, constituiu, na especialidade, uma das mais importantes contribuições para a doutrina nacional. E ainda deixou inéditos: um livro de orientação para o estudo e uma gramática de língua inglesa, obra manuscrita, com registro da pronúncia das palavras.

No geral, sua produção jurídica se distinguiu pelo estilo simples, direto, sem rebuscamentos literários nem o luxo das citações sistemáticas, que, a seu dizer, só servem para ostentar erudição. Sua preocupação de jurista era para com o próprio texto da lei, que ele considerava a fonte de todos os subsídios do intérprete. Seu objetivo era também externar uma opinião individual, porque “os autores genuínos não são aqueles que convertem suas obras em verdadeiros armazéns de mercadorias alheias, mas os que fabricam, elaboram, produzem opinião própria”.

 

Livros de Câmara Leal.
Livros de Câmara Leal | Acervo do autor

 

 

Pois, pasmem os colegas leitores que, por volta de 1953, Câmara Leal bateu com os costados em Apucarana, no Norte do Paraná. Não tinha 60 anos de idade, mas aparentava estado de abandono e debilidade física. Foi morar na Vila Regina, numa pensão do bairro ferroviários, próxima da estação da estrada de ferro, onde dormia num quarto comum com outros hóspedes.

Elias Farah, era então um jovem advogado da cidade, e se dispôs a acolhê-lo no seu escritório da Praça Ruy Barbosa, no centro da cidade, onde o velho Câmara Leal passou a atuar e dar aconselhamento profissional a clientes e advogados da cidade, enquanto assumia a disciplina da Ciências Naturais, no colégio estadual da cidade.

Lamentavelmente, porém, Câmara Leal estava precocemente envelhecido, doente e quase cego, devido ao diabetes. Mas, ali ficou só por um tempo, a prazo curto, pois correu a notícia de sua debilidade, e mãos compadecidas e influentes levaram-no para Curitiba, em dezembro de 1953, nomeado interinamente 2º promotor da capital, mas à disposição da Procuradoria-Geral de Justiça.

Chegou a ser nomeado promotor interino de Campo Mourão, onde consta que assumiu e exerceu as funções durante o mês de março, para em seguida retornar à capital, posto à disposição da sede da instituição.

Dali em diante passou a gozar de licença para tratamento de saúde, até que fosse levado à morte, em 2 de março de 1957, com 64 anos, constando que deixava filhos do primeiro e segundo casamento, mas sem a existência de bens. O registro do óbito acusou uremia e insuficiência cárdio renal.

Na verdade, era homem de saúde frágil e surtos freqüentes de depressão; pois consta do histórico familiar que cada vez que publicava um livro era acometido de grave depressão, que o levava a ser internado em clínica psiquiátrica. No último ano de vida, já perdia toda a consciência e passou seu último ano vestido de batina de padre.

Por fim, pende uma pergunta, ainda sem resposta: que tragédia teria se abatido sobre esse brilhante jurista paulista, para levá-lo ao abandono de si mesmo e a deixar que sua vida se finasse de forma tão obscura, numa idade em que tantos outros ainda vivem em plena atividade criativa? Sua produção jurídica envelheceu e saiu da prateleira das livrarias, como ocorre, em geral, com a constante mudança da literatura jurídica, sobretudo com aquela preferida dos noviços do Direito, e seus simples operadores, atrás das lições mais simples e mais recentes.

Mas, de arremate, o juízo mais agudo que se pode fazer, é o de que coube ao Paraná, afinal, socorrer os dias derradeiros desse filho rejeitado de São Paulo, para tentar restituir-lhe um pouco mais da dignidade perdida, ao contrário do que fez seu estado natal, que injustamente o abandonou e o esqueceu, a despeito das contribuições que legou às letras jurídicas de São Paulo e as que deixou de herança ao seu próprio país.

Embora com um triste desfecho, o episódio vale para um registro altamente honroso para o Ministério Público do Paraná, que é justo relembrá-lo em homenagem à memória de nossa instituição.


Notas do Memorial

1. Antônio Luiz da Câmara Leal nasceu em 10 de outubro de 1892, em Taubaté (SP).

2. Em livro de notas genealógicas datado de 1939, escrito por Gastão Aldano Vaz Lobo da Câmara Leal e pertencente ao seu bisneto Ricardo Pereira Câmara Leal, constam anotações indicando que Eusébio Inocêncio Vaz Lobo da Camara Leal, pai de Antônio Luiz da Câmara Leal, casou-se em segundas núpcias com Andradina de Godoy em 26 de dezembro de 1891, em Taubaté (SP). Desse matrimônio nasceram Antônio Luiz e sua irmã Anita Maria. Consta que Antônio Luiz da Câmara Leal casou-se com Juventina Neves, professora da Escola Normal de Taubaté, tendo 5 filhos: Stela Maria, Luiz Carlos, José Luiz, Fausto Messias e Celeste Maria. Eusébio, o pai do Antônio Luiz, teve outros 5 filhos do primeiro casamento. Documenta-se que a família Camara Leal se originou do casamento do Coronel Luiz Francisco Leal, nascido em Portugal em 4 de janeiro de 1798, com Maria José da Camara, nascida em Portugal em 4 de janeiro de 1802. Maria José veio criança com o pai para o Brasil em 1808, na comitiva da família real, pois o pai era da Casa Militar de D. João. No Rio de Janeiro, conheceu o militar do exército português Luiz Francisco Leal, casando-se em 1821 e formando a família. O casal teve 3 filhos; o primogênito, Luiz Francisco da Câmara Leal, nasceu em 27 de julho de 1822, no Rio de Janeiro, formou-se em Direito em 1845 na faculdade de São Paulo, casou-se com Ana Maria Gil Vaz Lobo em 1849 e com ela teve 8 filhos (Eusébio Inocêncio foi o quinto). Luiz Francisco foi juiz em algumas comarcas no Rio de Janeiro e no Ceará, posteriormente nomeado juiz em Curitiba (1854), chefe de polícia do Paraná e vice-presidente da Província. Depois, foi juiz no interior do RJ, desembargador em Ouro Preto e finalmente Procurador da Coroa em Ouro Preto, onde faleceu em 1878. Em seguida, a família mudou-se para São Paulo. Eusébio Inocêncio, o pai do Antônio Luiz, nasceu em Curitiba em 1857 e formou-se na Faculdade de Direito de São Paulo em 1879, falecendo em 1932 em Taubaté.

3. Luiz Francisco da Câmara Leal foi removido da comarca de Imperatriz (CE) para a de Curitiba (PR) pelo decreto do imperador de 29 de setembro de 1854. Em artigo de 31 de julho de 2004, por ocasião do aniversário de 150 anos da instalação da comarca de Curitiba na Província do Paraná, o desembargador de Justiça Accacio Cambi escreveu um artigo em que relata, entre outras coisas, que a população de Curitiba era inferior a 7 mil habitantes quando da chegada do juiz Luiz Francisco.

4. Antônio Luiz da Câmara Leal frequentou o Colégio São Luís, de Itu (1902-1903), onde também cursou humanidades (1904-1909).

5. Informações do Tribunal de Justiça de São Paulo, publicadas por ocasião do Dia da Memória do Poder Judiciário em 12 de maio de 2020.