Ary Florêncio Guimarães – um tempo de transição?

08/01/2021 | Por Rui Cavallin Pinto

No Paraná o Ministério Público surgiu com a República e a adoção do sistema Federativo, constante do capítulo I, arts. 40 e 44, do Decreto n. 1, de 15.6.1891 , representado pelo procurador-geral, servindo junto ao Tribunal de Apelação, sem voto, e, em primeira instância, pelos promotores públicos.

Porém, durante mais dos primeiros 60 anos da Instituição, o comando do Ministério Público ficou confiado apenas a magistrados e advogados, e sua autonomia administrativa só veio conquistada com a Constituição 1988, incluída a nomeação da chefia mediante eleição de membros do seu próprio quadro.

Ary Florêncio Guimarães foi um procurador-geral em períodos sucessivos de 1947, 1958-1959 e 1966-1971, quando deixou a Instituição para integrar o Tribunal de Alçada, na vaga do Ministério Público.

Ary era curitibano, nascido em setembro de 1915 e se tornou bacharel em Direito no ano de 1938, pela UFPR, e, em 1960 era professor catedrático de Direito Judiciário Civil da mesma Faculdade, além de fundador da Faculdade de Direito de Curitiba, onde lecionou Teoria Geral do Estado, Direito Administrativo e Judiciário Civil. 

Em 1967, integrou a comissão para estudo da Reformulação Constitucional do Estado, perante a Constituição Federal de 1963 e, ainda em 1967, participou da elaboração do Anteprojeto da Nova Lei de Organização e Divisão Judiciária do Estado. 

 

Ary Florêncio Guimarães | Ilustração do autor
Ary Florêncio Guimarães | Ilustração do autor

 

 

Foi também autor de importantes obras jurídicas, como “O Ministério Público e o Mandado de Segurança”; “Aspectos da Ação Popular de Natureza Civil”; “Liberdades Fundamentais da Pessoa Humana em face do Estado” e “Emendas ao Código de Processo Civil Brasileiro”.

Como integrante do Ministério Público e, sobretudo, como chefe da Instituição por mais de oito anos, Ary Florêncio revelou especial afeição ao órgão ministerial, que não reduzia sua participação na função jurisdicional do Estado e como Instituição de atribuições constitucionais, senão seu zelo se estendia também à própria postura pessoal e social do promotor, além da eficiência do seu desempenho. Assim, era frequente vê-lo surpreender o promotor numa rua de Curitiba, escapo do expediente, para cobrar o motivo de seu afastamento da comarca, se tinha autorização para isso e se havia recorrido de todas as decisões absolutórias injustas. Prestadas as contas, pedia um cigarro… Noutras vezes, quando o promotor noviço assumia pela primeira vez sua função na comarca, dobravam suas recomendações quanto à apresentação e postura a serem adotadas, o trato às autoridades e ao juiz, e mesmo quanto ao convívio com os funcionários do serviço judiciário.

Era cuidadoso e esmerado. E esse esmero punha no próprio serviço, nos ofícios do gabinete, que costumava fazer à pena. Porém, certa feita fez constar num expediente dirigido ao general comandante da região: "Exmo. Sr. General de Brigada", que a datilógrafa converteu em "Sr. General da Banda", provocando sério constrangimento e providências para pronto reparo pessoal. Noutras vezes, já não escrevia seus pareceres. Estudava-os, preparava de antemão e ditava à jovem aprendiz de datilografia, Izabela Kodaka, de uma família de origem japonesa que trabalhava na PGJ.  Era moça simples, tirada da lavoura e expulsa de casa pelo pai, que Ary Florêncio orientava na datilografia e transmitia regras básicas da língua e desempenho funcional, do que hoje se diz agradecida, pois logo se converteu numa valiosa servidora da Procuradoria-Geral.

Ao tempo da chefia de Ary Florêncio e da Constituição de 1946, o Ministério Público ainda não tinha autonomia administrativa, funcional e financeira, embora ganhasse título próprio e representação federativa independente dos outros poderes. O ingresso era por concurso, o cargo estável com promoção de carreira.

Era uma instituição nacional.

Mas para que alcançasse essa identidade própria teve de percorrer um longo percurso semeado de incompreensão e resistência. Como disse Hélio Tornaghi, essa conquista não surgiu de repente como um deus ex machina1 ou um ato legislativo, foi fruto de lenta e gradativa conquista. Adotado para substituir a vingança privada e distinguir promotor de juiz, o Ministério Público foi visto, a princípio, como órgão menor, colaborador, apêndice do judiciário, igual a árbitros, jurados, tutores, curadores, testemunhas et al., para servir ad nutum. Montesquieu viu na sua criação uma “lei admirável”, mas para o jurista Músio não passava de il più terribile dei flageli2, igual a Ângelo Brofferio, que viu nele a imagem do cavalo de Troia, pieno d’armi e di perfidie3. O nosso Humberto de Campos viu também o mesmo “carrasco legal da consciência”, que devia ser encerrado nas penitenciárias para dele extrair peçonha.

Essa visão impiedosa do órgão e, de outro modo, ocupando uma posição menor e desigual na prestação judicial, deu ensejo a que muitos dos seus iguais assumissem uma preponderância que, na verdade, não detinham, como ocorreu com o promotor Antônio Ferreira Viana, figura do Império, demitido a bem do serviço público porque ao invés de pedir a condenação do réu, pediu sua absolvição. Ou, o promotor Celso Magalhães, do Maranhão, demitido pelo presidente da Província, por ter levado a júri Dona Ana Rosa Ribeiro, da aristocracia social da cidade, pela morte a pancadas do menino escravo Inocêncio, de oito anos. Ou, mais, no Paraná, onde o juiz deixou de receber a denúncia do promotor Laertes Munhoz, porque, a seu juízo, a acusação não incluía a participação de uma outra pessoa no crime, impondo-lhe multa de 1/3 e suspensão do cargo por um mês.

É grande o rol de exemplos semelhantes de um tempo que todos temos por vencido, mas que ainda conserva os vestígios de um promotor submisso ao poder, e que, como deixou registrado Francisco Ribeiro de Azevedo Macedo, não ocupava a mesa de julgamento, junto dos demais juízes, mas era situado num plano inferior, reservado ao escrivão. Hoje não, ele ocupa o parquet (ou enclos), com espaço próprio para sua expressão de independência.

Ora, guardadas as necessárias vênias, imagino que Ary Florêncio ainda registra parte das memórias e imagens dessa diferença entre um tempo e outro. De um lado a própria personalidade de seu trato polido e respeitoso. Era homem de gesto e palavra mansa, na convivência comum, mas punha particular reverência no trato superior, precedendo todo diálogo com o renome e a reputação do seu interlocutor. São traços isolados, mas que ainda enfrentam resistência à memória da Instituição. Era assim que ele queria ver o promotor bem posto e bem composto, no tribunal, na rua e no posto.

Doutra parte foi jurista que cumpriu belo papel relevante na chefia da Instituição, na promoção da sua autonomia e na projeção do papel jurídico e social do Ministério Público.

Foi reconhecido integrando o Conselho Editorial da “Revista dos Tribunais” e “Direito Processual”, de São Paulo, e agraciado com a medalha de “Mérito Judiciário”.

Mas, ainda vale perguntar, foi esse mesmo um tempo de transição? 


* Para saber mais sobre Ary Florêncio Guimarães, clique aqui.


Notas do Memorial

1. Expressão utilizada pelo teatro grego em que uma entidade superior desce à cena e resolve um impasse vivido pelos personagens. 

2. O mais terrível dos flagelos.

3. Cheio de armas e perfídias.