Aposentar, por quê?
05/07/2023 | Por Rui Cavallin Pinto
Embora os agentes do Ministério Público de hoje recebam o tratamento de Operadores do Direito, há, como se sabe, muitos deles que operam menos do que deviam. Além disso, penso que por causa de embaraços e outros mais, difícil à justiça descartar o estigma popular de atraso, visto que sua demanda constitui uma ânsia coletiva, uma espécie de angústia universal, quase sempre vindicadora e insatisfeita. Daí porque sempre se fez da justiça uma ideia associada à fome e à sede, sensações primárias e permanentes que afetam toda a humanidade.
Digo isso só para contar que, há algum tempo atrás, havia um colega que, por desafeição ao trabalho, deixava os processos se acumulassem sine die1 sobre sua mesa. E, em consequência disso, seu serviço se mantinha em lamentável atraso, com queixas constantes do juiz e das próprias partes.
Então, essas dificuldades logo passaram a se refletir além da parte do promotor, para chegaram ao ouvido do chefe do Parquet e parte dos seus colegas, que reagiram também. Porém, apesar das advertências e ameaças dos seus superiores, nem por isso o contumaz se redimia. Foi então que alguém aventou para a solução da aposentadoria, sobretudo porque o desidioso já contava com tempo suficiente para legitimar sua vocação para a ociosidade. A essa altura, porém, alguém advertiu que a aposentadoria não podia ser concedida se o trabalho estava com atraso. Era norma da Instituição. Primeiro, tinha que oficiar em todos os processos com vista, limpar sua mesa e gavetas, para... só depois, ganhar aposentadoria.
A solução foi então posta ao candidato que prontamente aderiu à ideia da inatividade compulsória, mediante o trabalho de um mutirão coletivo que pusesse seu trabalho em dia, para o qual, então, foi designado um grupo de colegas dos mais ativos. E assim o mandrião ficou só a lançar sua assinatura nas denúncias, diligências, razões e recursos que o grupo produzia, e foram chegando ao fim da jornada. Porém, não sem antes, uma vez ou outra, o madraço se atrevesse a proferir o seu arrogante:
– Essa denúncia eu não assino: é inepta!
Era o que bastava para todo o grupo se levantar:
– Estamos todos aqui, a seu serviço e o que é do seu dever! ... Se não o agrada, assuma então e tire o atraso, ou se limite a assinar o que estamos fazendo no seu lugar.
E a coisa assim se acomodava... até chegar ao fim da tarefa.
Ao cabo, o promotor foi chamado ao gabinete do procurador-geral, para as providências de sua aposentadoria e foi então que já mostrava outra cara e até a intenção de não cumprir mais seu trato. Assim, à cobrança do chefe respondeu que seu compromisso fora de aceitar a aposentadoria justificada pelo atraso do serviço. Agora, já posto em ordem tudo, já não havia mais a obrigação do seu afastamento. Queria, pois, permanecer na ativa e disse então:
– Excelência, se não há mais razão que me obrigue ao afastamento, prefiro continuar no meu ofício e permanecer na ativa, porque gosto do faço e tenho orgulho da minha Instituição.
Então, embora renegasse o trato e se dispusesse a permanecer, mesmo assim, diante de sua relutância, outros argumentos ou prerrogativas vieram a prevalecer, próprios da autonomia da Instituição, e sua aposentadoria foi por fim decretada, por avocação do seu mau desempenho anterior e da necessidade da intervenção, justificando que passasse doravante, a fruir do otium cum dignitate2, que, mesmo imposto, acabou se tornando em desfruto do seu maior gosto.
Notas do Memorial
1. Do Latim “sem um dia”, “sem data determinada”.
2. Do Latim “lazer com dignidade”.