Estudo sobre a decisão do STJ que reconheceu competência da Justiça Federal para julgar racismo praticado em redes sociais 24/01/2023 - 17:47
No dia 19 de dezembro de 2022 foi publicada a decisão da Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça no âmbito do Conflito de Competência CC 191.970-RS, de Relatoria Ministra Laurita Vaz, que, por unanimidade de votos, reconheceu que, demonstrado que falas homofóbicas tenham sido divulgadas pela internet, “em perfis abertos da rede social Facebook e da plataforma de compartilhamento de vídeos Youtube, ambos de abrangência internacional, está configurada a competência da Justiça Federal para o processamento e julgamento do feito”.
De plano, importante dizer que o raciocínio utilizado na decisão se aplica aos crimes de racismo, xenofobia e LGBTIfobia, visto que todos estão abrangidos .
No caso concreto, analisava-se conduta de investigado que, "na condição de Chefe do Executivo, classificou, em suas palavras, como 'conteúdo erotizado' e 'viadagem' o teor ministrado em sala por professor do Município, para alunos do 9° Ano, na disciplina de Artes, em que fora apresentado clipe da música 'Etérea', do artista 'Criolo', para um debate sobre solidariedade, tolerância e resguardo de direitos inerentes à pessoa humana, com temas como 'artivismo' e 'pacifismo', este idealizado como cultura de paz”.
No julgamento do Conflito de Competência, suscitado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região contra o Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, inicialmente a relatora frisou que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão n. 26, firmou o entendimento de que a homofobia traduz expressão de racismo, compreendido em sua dimensão social, ensejando, assim, o tratamento legal conferido ao crime de racismo.
Na sequência, a relatora relembrou que a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, em julgamento ocorrido em 13/05/2020, já havia assentado que a Constituição da República "reconhece a competência da Justiça Federal não apenas no caso de acesso da publicação por alguém no estrangeiro, mas também nas hipóteses em que a amplitude do meio de divulgação tenha o condão de possibilitar o acesso [...] ainda que o conteúdo não tenha sido efetivamente visualizado fora do território nacional (CC 163.420/PR, Rel. Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, DJe 01/06/2020; sem grifos no original).”
Concluiu, então, em seu voto, que sendo o meio de divulgação de conteúdo em tese discriminatório adotado pelo investigado capaz de permitir o acesso por usuários no exterior, e sendo crível admitir que o material foi acessado fora do Brasil, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região é competente para apreciar o caso.
Para acessar o acórdão na íntegra, clique aqui.
Aparente divergência entre STJ e STF
A referida decisão do STJ aparentemente caminha em sentido diverso ao indicado em julgados do STF dos últimos anos.
No ARE 11693221, de março de 2019, a Primeira Turma do Supremo admitiu existir jurisprudênca do Tribunal no sentido de que “a divulgação de mensagens incitadoras da prática de crime pela rede mundial de computadores não é suficiente para, de per si, atribuir à prática do crime a demonstração de resultado além do território nacional”. Apontou-se, no caso, que o agravado se apresentava como anti-semita e skinhead com “ódio dirigido a judeus, negros e nordestinos” no site do fórum de discussões do website CORREIOWEB e teria proferido ofensas a usuários.
Importante assinalar que esse espaço virtual (fórum de discussões da página virtual CORREIOWEB) é acessível a qualquer pessoa em qualquer lugar. Portanto, de acordo com o raciocício expressado pelo STJ em seu recente precedente, a decisão do STF deveria ter se encaminhado pela competência da Justiça Federal, o que não o fez.
No mesmo sentido, outros julgados do STF: ACO 1.780, Rel. Min. Luiz Fux, RE 1.053.961, Rel. Min. Dias Toffoli, HC nº 121.283/DF, Rel. Min. Roberto Barroso, DJe de 14/5/14
Logo, as últimas decisões do STF e do STJ sobre esse tema se mostram conflitantes.
Decisões anteriores do STJ
Ainda, imperioso ressaltar que a referida decisão da Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça aplica-se tão somente aos casos em que o racismo, xenofobia ou LGBTIfobia é praticada por meio de perfis abertos de redes sociais ou em páginas de internet acessíveis a qualquer pessoa.
Quanto aos canais de comunicação privados, no Conflito de Competência n. 150.564 - MG2, a Terceira Seção do STJ, em 26 de abril de 2017, em um caso de divulgação de imagem pornográfica envolvendo adolescente via Whatsapp e chat do Facebook, apontou que “a constatação da internacionalidade do delito demandaria apenas que a publicação do material pornográfico tivesse sido feita em ambiência virtual de sítios de amplo e fácil acesso a qualquer sujeito, em qualquer parte do planeta, que esteja conectado à internet”. Contudo, complementou que, no caso em específico, as imagens da vítima haviam sido enviadas a particulares, tanto no aplicativo Whatsapp quanto nos diálogos desenvolvidos por meio do chat do Facebook, de maneira que a comunicação havia se dado entre destinatários específicos escolhidos pelo emissor das mensagens e, que, portanto, pelas trocas de mensagens privadas não acessíveis a qualquer pessoa, não se configurava a internacionalidade. Devido a isso, restou firmado que a competência era da Justiça Estadual para análise e julgamento do caso.
Além disso, no Conflito de Competência n. 175525-SP3, cuja decisão é de 09 de dezembro de 2020, o órgão posicionou-se de maneira similiar, em um caso de delito de incitação/induzimento à discriminação ou preconceito de raça, praticado por grupo de mensageiro eletrônico - Whatasapp -, mesmo contendo um integrante que possuía conta com vinculação a linha telefônica de prefixo estrangeiro. De acordo com o STJ, “a imprescindível transnacionalidade, necessária à configuração da competência da Justiça Federal comum não pode ser presumida em grupos fechados de WhatsApp, especialmente quando veiculem mensagens em português, salvo quando comprovada a efetiva postagem ou o efetivo acesso por pessoa que se encontre no estrangeiro.”
Assim, ainda que se compreenda que a publicação de declarações discriminatórias na internet possa ensejar a atuação da Justiça Federal, faz-se importante a análise dos casos concretos acerca da caracterização da transnacionalidade do delito.
1Disponível em https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=749535585
2Disponível em https://processo.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201603384481&dt_publicacao=02/05/2017
3Disponível em https://processo.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=202002713927&dt_publicacao=11/12/2020