Direito ao uso do nome social por pessoas transgêneros
25/01/2022 - 14:50

Diante do horizonte constitucional e convencional, o nome social de pessoas transexuais deve ser respeitado por todos, nos ambientes públicos e privados,  em atenção às categorias jurídicas da identidade de gênero e dos direitos fundamentais à liberdade de expressão e dignidade da pessoa humana.

A efetivação do direito ao uso do nome social por pessoas com identidade de gênero diversa do gênero constante no registro civil está intrinsecamente relacionada com a observância do princípio da dignidade humana, enquanto um dos fundamentos que regem a República Federativa do Brasil e um dos comandos constitucionais que orientam a missão do Ministério Público brasileiro.

Além do amparo constitucional, é certo que o instituto fundamenta-se em previsões cogentes da Constituição da República, do Direito Internacional dos Direitos Humanos, bem como de normas infraconstitucionais, que ressaltam a sua relevância para a construção da identidade da pessoa trans e para o reconhecimento dos seus direitos conforme a sua personalidade.

A Constituição Federal de 1988, ao elencar entre os objetivos da República Federativa do Brasil a construição de uma sociedade livre, justa e solidária, tendo como pressuposto a erradicação da marginalização, redução das desigualdades sociais e a promoção do bem de todos sem qualquer forma de discriminação (art. 3º, I, III e IV(1)),  alicerça as suas demais normas no postulado de respeito à pluralidade e democracia. Assim, impede qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência de direitos entre as pessoas de forma injustificada e baseadas nas características humanas, incentivando, por outro lado, a promoção de ações, programas e políticas públicas que contribuam para a superação dessas desigualdades.

Os mandamentos constitucionais acima mencionados, bem como os princípios da  igualdade, da não discriminção e da liberdade, em todas as suas dimensões, devem ser interpretados em conjunto com a Convenção Americana de Direitos Humanos (1969), o Protocolo de São Salvador (1988), a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas correlatas de Intolerância, os Princípios de Yogyakarta (Yogyakarta, 2006) e demais documentos internacionais correlatos. Dessa forma, a aplicação das normas passa por um controle multinível para uma mais adequada tutela de direitos humanos.

Quanto aos Princípios de Yogyakarta (Yogyakarta, 2006), mencione-se que o princípio 19 faz referência especificamente ao Direito à Liberdade de Opinião e de Expressão de identidade ou autonomia pessoal, inclusive quanto à escolha de nome, sendo que, para assegurar o pleno gozo de tal direito, deverão ser tomadas todas as medidas necessárias.

De se destacar, também, o posicionamento consolidado e recentemente ratificado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Azul Rojas Marín y otra vs. Perú, segundo o qual as pessoas LGBTI têm sido historicamente vítimas de discriminação estrutural, estigmatização, várias formas de violência e violações de seus direitos fundamentais(2). Nesse sentido, já foi estabelecido que a orientação sexual, identidade de gênero ou expressão de gênero são categorias jurídicas protegidas pela Convenção Americana.

Nesta perspectiva, deve-se conferir, então, tutela especial, sob o prisma da diversidade, ao direito personalíssimo à construção da identidade através do direito ao nome, compreendido pelo prenome e o sobrenome. Sabemos que o nome diz respeito à pessoa que o porta e não deve apresentar qualquer empecilho ao seu bem viver em sociedade. 

Para as pessoas transgêneras, justamente por ser este um dos principais aspectos de reconhecimento de suas identidades de gênero, que orientará, inclusive, a observância dos demais direitos, permitiu-se, juridicamente, a autoapresentação por meio de nome social. Diante da relevância deste assunto para atendimento de pressupostos elementares da dignidade da pessoa humana do aludido segmento populacional, já em 2016 o art. 1º, parágrafo único do Decreto federal nº 8.727, de 28 de Abril de 2016, trouxe-nos conceitos importantes quanto à identidade de gênero e nome social:

Art. 1º Este Decreto dispõe sobre o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis ou transexuais no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional.
Parágrafo único. Para os fins deste Decreto, considera-se:
I - nome social - designação pela qual a pessoa travesti ou transexual se identifica e é socialmente reconhecida; e
II - identidade de gênero - dimensão da identidade de uma pessoa que diz respeito à forma como se relaciona com as representações de masculinidade e feminilidade e como isso se traduz em sua prática social, sem guardar relação necessária com o sexo atribuído no nascimento.

Um mês antes, no mesmo ano, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) emitiu a Nota Técnica 08/2016(3) sobre a atuação do Ministério Público na proteção do direito fundamental à não discriminação e não submissão a tratamentos desumanos e degradantes de pessoas travestis e transexuais, especialmente quanto ao direito ao uso do nome social no âmbito da Administração Direta e Indireta da União, dos Estados e dos Municípios. Sensível às condições degradantes a que eram - e ainda são - submetidas as pessoas transgêneras, afirmou o CNMP que “não cabe ao Estado julgar porque as pessoas são travestis e transexuais, tal autorreconhecimento está na esfera da vida privada e cabe ao Estado tão somente reconhecer essas manifestações da diversidade humana e assegurar o respeito aos direitos fundamentais de tais pessoas”, concluindo que o fato de não haver lei geral regulamentando o uso do nome social “não impede a eficácia imediata dos direitos fundamentais imbricados”. 

Com o passar dos anos, robusteceu-se o instituto do nome social, que encontrava lastro em alguns atos normativos secundários  - como a Portaria nº 233, de 18/05/2010, do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão(4) e o Decreto nº 43.065, de 08/07/2011, do Estado do Rio de Janeiro(5), que asseguraram o uso do nome social por travestis e transexuais no âmbito da Administração Pública; a Portaria nº 1.820, de 13/08/2009, do Ministério de Saúde, que dispôs sobre os direitos e deveres dos usuários da saúde, incluindo previsão de que todo documento do usuário ou usuária deveria ter um campo para o registro do nome social(6); e a Resolução nº. 11, de 18 de dezembro de 2014 do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de lésbicas, gays, travestis e transexuais (CNCD/LGBT(7)).

Em 05 de fevereiro de 2018, foi publicado o Decreto nº 9.278, que regulamentou a Lei nº 7.116, de 29 de agosto de 1983(8), estabelecendo normas sobre a expedição das Carteiras de Identidade, prevendo a possibilidade de inclusão de nome social nela a pedido escrito da pessoa interessada (art. 8º, inciso XI e § 4º), sem exigência de documentação comprobatória:

Art. 8º Será incluído na Carteira de Identidade, mediante requerimento:
[...]
XI - o nome social.
[...]
§ 4º O nome social de que trata o inciso XI do caput :
I - será incluído:
a) mediante requerimento escrito do interessado;
b) com a expressão “nome social”;
c) sem prejuízo da menção ao nome do registro civil no verso da Carteira de Identidade; e
d) sem a exigência de documentação comprobatória; e

Já no ano corrente, o Conselho Nacional do Ministério Público publicou a Resolução nº 232, de 16 de junho de 2021, que assegura o uso do nome social pelas pessoas trans usuárias dos serviços ministeriais, sejam elas partes, procuradores(as), membros(as), servidores(as), estagiários(as) ou trabalhadores(as) terceirizados(as), independentemente de alteração da documentação civil. O texto explica que nome social é a “designação pela qual a pessoa transgênero se identifica e é socialmente reconhecida”, bem como pontua que a identidade de gênero, enquanto “dimensão da identidade de uma pessoa que diz respeito à forma como se relaciona com as representações de masculinidade e feminilidade, sem guardar relação necessária com o sexo atribuído ao nascimento”, também deve ser respeitada.

De acordo com o art. 2º do conjunto normativo, “os sistemas informatizados de procedimentos administrativos e investigatórios utilizados no Conselho Nacional do Ministério Público e no âmbito do Ministério Público brasileiro deverão conter campo especificamente destinado ao registro do nome social da parte e de seu procurador”. Os atos  praticados por  integrantes do Ministério Público não precisarão, em regra, da indicação do nome civil, bastando a identificação do signatário pelo seu nome social, mantendo-se apenas no registro administrativo interno a vinculação entre o nome social e o nome civil.

Desse modo, nos termos do art. 3º, § 2º, o nome social será utilizado nas comunicações internas de uso social; cadastro de dados, informações de uso social e endereço de correio eletrônico; identificação funcional;  listas de números de telefones e ramais; e nome de usuário em sistemas de informática, sem prejuízo de outras possibilidades. Para tanto, a pessoa interessada deverá apresentar requerimento escrito de uso do nome social ao(à) responsável pela análise do pedido, o que poderá ser feito a qualquer tempo.

A apreciação do pedido será realizada de acordo com a pessoa solicitante  e o órgão em que atua, se for integrante do Ministério Público ou do Conselho Nacional do Ministério Público, conforme redação do art. 4º, a seguir citado:

Art. 4º [...]§ 1º A apreciação do requerimento formulado por membro ou agente ministerial será, a depender da lotação do requerente, de competência da Presidência do Conselho Nacional do Ministério Público ou das chefias dos respectivos ramos do Ministério Público brasileiro, permitida a sua delegação. 
§ 2º A apreciação do requerimento formulado por servidor ou estagiário será de competência do dirigente da unidade de Gestão de Pessoas onde estiver lotado o requerente. 
§ 3º A apreciação do requerimento formulado por terceirizado será de competência da Direção do órgão em que o terceirizado presta serviço. 
§ 4º A apreciação do requerimento formulado pela parte ou seu procurador será de competência: I – do membro incumbido da distribuição dos procedimentos administrativos e/ou investigatórios, se formulado no momento da apresentação do procedimento; II – do Conselheiro ou agente ministerial competente para a condução do procedimento, se apresentado posteriormente.

Por fim, importante ressaltar que, em seu art. 5º, a Resolução  232/2021 do CNMP estabelece o dever dos órgãos de estudo e de aperfeiçoamento funcional, bem como as respectivas unidades de Gestão de Pessoas do Conselho Nacional do Ministério Público e de todos os ramos do Ministério Público brasileiro, no âmbito de suas atribuições, de promover a formação contínua sobre a temática da diversidade sexual e de identidade de gênero, necessária à efetiva aplicação da  Resolução.

Nesse sentido, o ordenamento jurídico e as orientações do Conselho Nacional do Ministério Público caminham na mesma direção do Direito Internacional dos Direitos Humanos, indo ao encontro, sobretudo,  do Relatório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, “Leis Discriminatórias, Práticas e Atos de Violência contra Indivíduos em Razão de sua Orientação Sexual e Identidade de Gênero” (A/HRC/19/41), especialmente da recomendação h, que orienta os Estados Membros facilitarem o reconhecimento legal do nome escolhido pelas pessoas trans de acordo com a sua  identidade de gênero(9).

Dessa forma, o nome social deve ser observado nos ambientes públicos e privados,  como respeito à identidade de gênero e aos direitos fundamentais à liberdade de expressão e dignidade da pessoa humana.


1. CF Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

2. Cfr. Caso Atala Riffo y niñas Vs. Chile. Fondo, Reparaciones y Costas, supra, párrs. 92 y 267, y Identidad de género, e igualdad y no discriminación a parejas del mismo sexo. Obligaciones estatales en relación con el cambio de nombre, la identidad de género, y los derechos derivados de un vínculo entre parejas del mismo sexo (interpretación y alcance de los artículos 1.1, 3, 7, 11.2, 13, 17, 18 y 24, en relación con el artículo 1 de la Convención Americana sobre Derechos Humanos). Opinión Consultiva OC-24/17 de 24 de noviembre de 2017. Serie A No. 24, párr.

3. Disponível em: <https://www.cnmp.mp.br/portal/images/Normas/Notas_Tecnicas/NotaTcnica8.pdf>

4. Disponível em:< conteudo.php?conteudo=186#:~:text=Portaria%20n%C2%BA%20233%2C%20de%2018,adotado%20por%20travestis%20e%20transexuais>

5. Disponível em: <https://www.saude.rj.gov.br/comum/code/MostrarArquivo.php?C=NzI1Mw%2C%2C#:~:text=Julho%20de%202011-,DISP%C3%95E%20SOBRE%20O%20DIREITO%20AO%20USO%20DO%20NOME%20SOCIAL%20POR,JANEIRO%20E%20D%C3%81%20OUTRAS%20PROVID%C3%8ANCIAS>

6. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2009/prt1820_13_08_2009.html>

7. Disponível em:  <http://www.sesp.mt.gov.br/documents/4713378/11927966/Resolucao-11-CNCD_LGBT.pdf>

8. Sobre este aspecto, destaca-se foi divulgado pela Agência de Notícias do Paraná  em   janeiro de 2020 sobre o início  a emissão de um novo modelo de carteira de identidade, com possibilidade de inclusão do nome social, mediante requerimento por escrito e relacionado à identidade de gênero. Disponível em:

9. Comitê de Direitos Humanos da ONU. A/HRC/19/41. VII. Conclusões e recomendações. (H) 84. The High Commissioner recommends that Member States:  “Facilitate legal recognition of the preferred gender of transgender persons and establish arrangements to permit relevant identity documents to be reissued reflecting preferred gender and name, without infringements of other human rights” (Facilitar o reconhecimento legal do gênero preferido das pessoas transsexuais e estabelecer disposições para permitir documentos de identidade relevantes a serem reeditados refletindo gênero e nome preferido, sem violações de outros direitos humanos).