CASO AZUL ROJAS MARÍN VS. PERÚ 07/02/2023 - 11:38
Este caso está relacionado com a privação de liberdade ilegal, arbitrária e discriminatória de Azul Rojas Marín por parte de agentes públicos, devido à sua orientação sexual e expressão de gênero, bem como estupro de que foi vítima durante o período de detenção. Apesar de gravíssimos, os fatos não foram investigados adequadamente.
No momento da prisão, a vítima, sozinha, caminhava à meia-noite em direção à sua casa. Os policiais abordaram-na, espancaram-na, obrigaram-na a entrar na viatura e gritaram-lhe três vezes: "cabro concha de tu madre", expressão ofensiva LGBTIfóbica. Em seguida, a senhora Rojas Marín perguntou por que a estavam a detendo, e o agente do Estado não lhe respondeu. Ela foi levada para a delegacia, onde agentes do Estado a despiram à força, espancaram-na, estupraram-na, inserindo uma vara em seu ânus, além de ser submetida a outros maus-tratos e insultos relacionados à sua orientação sexual. A vítima indicou que permaneceu na delegacia até as 6 da manhã.
Chama atenção que a Corte IDH concluiu que o conjunto de abusos e agressões sofridos por Azul Rojas Marín, incluindo estupros, configurou ato de tortura por parte de agentes do Estado.
Portanto, o Estado violou os direitos à integridade pessoal, à vida privada e a não ser submetido à tortura, consagrados nos artigos 5.1, 5.2 e 11 da Convenção, em relação às obrigações de respeitar e garantir esses direitos sem discriminação, consagrados no artigo 1.1 do mesmo tratado, e nos artigos 1 e 6 da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura.
Por fim, durante a investigação, o Ministério Público em nenhum momento examinou se a prisão e a posterior tortura da suposta vítima foram motivadas pela orientação sexual ou expressão de gênero da senhora Rojas Marín. As autoridades não realizaram nenhuma investigação sobre os comentários depreciativos a respeito de sua orientação sexual, que a senhora Rojas Marín alegou ter recebido. Da mesma forma, em uma das avaliações psiquiátricas, foram feitos comentários homofóbicos. Adicionalmente, durante a investigação dos fatos, a promotora teria dito à suposta vítima "mas se você é homossexual, como posso acreditar em você?" Além disso, durante a investigação deste caso, foram feitos comentários a respeito do comportamento sexual anterior da suposta vítima.
Seguem os principais standards emitidos pela Corte, nesta sentença:
a) em virtude da obrigação de não discriminar, os Estados devem adotar medidas positivas para reverter ou modificar as situações discriminatórias existentes em suas sociedades, em prejuízo de um determinado grupo de pessoas. Isso implica o dever especial de proteção que o Estado deve exercer em relação às ações e práticas de terceiros que, sob sua tolerância ou aquiescência, criam, mantêm ou favorecem situações discriminatórias.1
b) as pessoas LGBTI+ têm sido historicamente vítimas de discriminação estrutural, estigmatização, várias formas de violência e violações de seus direitos fundamentais2. É oportuno dizer, pois, que a orientação sexual, identidade de gênero ou expressão de gênero da pessoa são categorias jurídicas protegidas pela Convenção Americana.
c) A violência contra pessoas LGBTI+ é baseada no preconceito, geralmente percepções negativas em relação a essas pessoas ou situações que são alheias ou diferentes. Esse tipo de violência pode ser impulsionado por “el deseo de castigar a quienes se considera que desafían las normas de género”3.
d) A violência contra pessoas LGBTI+ tem um propósito simbólico, de maneira que a vítima é escolhida com o propósito de comunicar uma mensagem de exclusão ou subordinação. A esse respeito, a violência exercida por motivos discriminatórios tem por efeito ou finalidade impedir ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício dos direitos humanos e liberdades fundamentais. Essa violência, alimentada por discursos de ódio, pode dar lugar a outros crimes de ódio4.
e) Às vezes pode ser difícil distinguir entre discriminação com base na orientação sexual e discriminação com base na expressão de gênero. A discriminação com base na orientação sexual pode ser baseada em uma orientação sexual real ou percebida, razão pela qual inclui casos em que uma pessoa é discriminada por causa da percepção que outras pessoas têm sobre sua orientação sexual5. Essa percepção pode ser influenciada, por exemplo, pelo modo de vestir, penteado, maneirismos ou comportamento que não corresponde às normas tradicionais ou estereótipos de gênero, ou constitui uma expressão de gênero não normativa. No presente caso, a expressão de gênero da suposta vítima poderia estar associada por terceiros a uma orientação sexual específica.
f) O caso se enquadra no que considera um "crime de ódio", uma vez que é evidente que o ataque à vítima foi motivado pela sua orientação sexual, ou seja, esse crime não prejudicou apenas os direitos legais da vítima, mas foi também uma mensagem a todas as pessoas LGBTI+, como uma ameaça à liberdade e à dignidade de todo este grupo social.
g) Na investigação criminal por violência sexual, é necessário que: i) a declaração da vítima seja feita em ambiente confortável e seguro, que proporcione privacidade e confiança; ii) o depoimento da vítima seja registrado de forma a evitar ou limitar a necessidade de sua repetição; iii) o atendimento médico, de saúde e psicológico é prestado à vítima, tanto em caráter emergencial como permanente, se necessário, por meio de um protocolo de atendimento que tem por objetivo reduzir as consequências da violação; iv) seja efetuado imediatamente um exame médico e psicológico completo e pormenorizado por pessoal idôneo e treinado, tanto quanto possível do sexo indicado pela vítima, oferecendo-se para fazer-se acompanhar por alguém de confiança, se assim o desejar; v) Os atos investigativos são documentados e coordenados e as provas tratadas com diligência, recolhendo amostras suficientes, realizando estudos para determinar a possível autoria do evento, obtendo outras provas como as roupas da vítima, investigando imediatamente o local dos fatos, e garantindo a cadeia de custódia correta, e vi) acesso à assistência jurídica gratuita fornecido à vítima durante todas as fases do processo.
h) Quando se investigam atos violentos, como a tortura, as autoridades têm o dever de adotar todas as medidas cabíveis para revelar se há possíveis motivos discriminatórios. Essa obrigação implica que, quando houver indícios concretos ou suspeitas de violência por motivos discriminatórios, o Estado deve fazer o que for razoável de acordo com as circunstâncias, a fim de coletar e obter provas, explorar todos os meios práticos para descobrir a verdade e emitir de modo fundamentado decisões imparciais e objetivas, sem omitir fatos suspeitos que possam ser indicativos de violência motivada por discriminação. A falta de investigação nesse sentido dos possíveis motivos discriminatórios pode constituir, por si só, uma forma de discriminação que contraria o estabelecido no artigo 1.1 da Convenção Americana.
i) Preconceitos pessoais e estereótipos de gênero afetam a objetividade dos funcionários estaduais encarregados de investigar as denúncias que lhes são apresentadas, influenciando sua percepção para determinar se ocorreu ou não um ato de violência, em sua avaliação da credibilidade de testemunhas e da própria vítima. Os estereótipos “distorcem as percepções e levam a decisões baseadas em crenças e mitos preconcebidos, ao invés de fatos”, o que por sua vez pode levar à negação da justiça, incluindo revitimização de denunciantes6. O mesmo pode ocorrer nos casos de estereótipos por orientação sexual.
j) A abertura de linhas de investigação sobre o comportamento social ou sexual anterior das vítimas em casos de violência de gênero nada mais é do que a manifestação revitimizante de políticas ou atitudes baseadas em estereótipos de gênero7.
l) A tortura pode ser cometida visando a qualquer propósito, inclusive fins discriminatórios. No mesmo sentido, a definição de tortura estabelecida no artigo 2º da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura estabelece cláusula genérica “para qualquer outro propósito”.
m) O Estado deve adotar um protocolo vinculante para a investigação e processo penal de casos de vítimas LGBTI+, a regulamentar a atuação de todos os funcionários públicos envolvidos na investigação e tramitação de processos penais em casos de vítimas LGBTI+ de violência, bem como aos profissionais de saúde públicos e privados que participem nas referidas investigações. O referido protocolo deve incluir a obrigação de os agentes do Estado se absterem de fazer uso de presunções e estereótipos discriminatórios no recebimento, processamento e apuração de denúncias.
n) O Estado deve elaborar e implementar plano de capacitação de agentes da Polícia, do Ministério Público e do Poder Judiciário – a ser incorporado pelos cursos regulares de formação - sobre: i) respeito à orientação sexual e à expressão de gênero, especialmente diante de pessoas LGBTI+ que relatam ter sofrido violência sexual ou tortura; (ii) a devida diligência na condução de investigações e processos judiciais relacionados a discriminação, violência sexual e tortura de pessoas LGBTI+, e (iii) a natureza discriminatória dos estereótipos de orientação sexual e expressão de gênero e o impacto negativo que seu uso tem sobre as pessoas LGBTI+.
o) É necessário que o Estado colete informações completas sobre a violência sofrida por pessoas LGBTI+ para avaliar a real magnitude desse fenômeno e, em função disso, traçar estratégias para prevenir e erradicar novos atos de violência e discriminação. Deve ser elaborado um sistema de coleta de dados e cifras relativos aos casos de violência contra pessoas LGBTI+, que leve em conta o tipo, a prevalência, as tendências e os padrões de violência e discriminação contra pessoas LGBTI+. Fatores outros também devem ser levados em consideração: comunidades, raça, etnia, religião ou crença, estado de saúde, idade e classe ou imigração ou situação econômica. Além disso, deve ser especificado o número de casos efetivamente processados, identificando o número de denúncias, condenações e absolvições. Esta informação deve ser divulgada anualmente pelo Estado por meio de relatório8.
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1 Condición Jurídica y Derechos de los Migrantes Indocumentados. Opinión Consultiva OC-18/03 de 17 de septiembre de 2003. Serie A No. 18, párr. 104; Caso Comunidad Indígena Xákmok Kásek. Vs. Paraguay. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 24 de agosto de 2010. Serie C No. 241, párr. 271; Caso Norín Catrimán y otros (Dirigentes, miembros y activista del Pueblo Indígena Mapuche) Vs. Chile. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 29 de mayo de 2014. Serie C No. 279, párr. 201; Caso Espinoza Gonzáles Vs. Perú. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 20 de noviembre de 2014. Serie C No. 289, párr. 220; Caso Atala Riffo y niñas Vs. Chile. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 24 de febrero de 2012. Serie C No. 239, párr. 80; Caso Duque Vs. Colombia. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas, supra, párr. 92; Caso Flor Freire Vs. Ecuador. Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 31 de agosto de 2016. Serie C No. 315, párr. 110, y Caso Trabajadores de la Hacienda Brasil Verde Vs. Brasil. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 20 de octubre de 2016. Serie C No.318, párr. 336. Asimismo, Naciones Unidas, Comité de Derechos Humanos, Observación General No. 18, No discriminación, 10 de noviembre de 1989, CCPR/C/37, párr. 5.
2 Caso Atala Riffo y niñas Vs. Chile. Fondo, Reparaciones y Costas, supra, párrs. 92 y 267, y Identidad de género, e igualdad y no discriminación a parejas del mismo sexo. Obligaciones estatales en relación con el cambio de nombre, la identidad de género, y los derechos derivados de un vínculo entre parejas del mismo sexo (interpretación y alcance de los artículos 1.1, 3, 7, 11.2, 13, 17, 18 y 24, en relación con el artículo 1 de la Convención Americana sobre Derechos Humanos). Opinión Consultiva OC-24/17 de 24 de noviembre de 2017. Serie A No. 24, párr. 33.
3 Naciones Unidas, Informe de la Oficina del Alto Comisionado de las Naciones Unidas para los Derechos Humanos. Discriminación y violencia contra las personas por motivos de orientación sexual e identidad de género, 4 de mayo de 2015, A/HRC/29/23, párr. 21. Asimismo, Informe del Alto Comisionado de las Naciones Unidas para los Derechos Humanos. Leyes y prácticas discriminatorias y actos de violencia cometidos contra personas por su orientación sexual e identidad de género, 17 de noviembre de 2011, A/HRC/19/41, A/HRC/19/41, párrs. 20 y 21. Véase en el mismo sentido, Organización para la Seguridad y la Cooperación en Europa – OSCE, Hate Crimes in the OSCE Region – Incidents and Responses, reporte anual 2006, OSCE/ODIHR, Varsovia, 2007, pág. 53.
4 Al respecto la Corte ha destacado que “los discursos discriminatorios y las consiguientes actitudes que responden a ellos, con base en los estereotipos de heteronormatividad y cisnormatividad con distintos grados de radicalización, acaban generando la homofobia, lesbofobia y transfobia que impulsan los crímenes de odio”. Opinión Consultiva OC-24/17, supra, párr. 47.
5 Caso Flor Freire Vs. Ecuador. Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas, supra, párr. 120.
6 Caso Gutiérrez Hernández y otros Vs. Guatemala. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 24 de agosto de 2017. Serie C No. 339, párr. 173, y Caso López Soto y otros Vs. Venezuela. Fondo, Reparaciones y Costas, supra, párr. 326. Ver, en el mismo sentido, Comité para la Eliminación de la Discriminación contra la Mujer, Recomendación General 33 sobre el acceso de las mujeres a la justicia, 2015, párr. 26.
7 Caso Véliz Franco y otros Vs. Guatemala. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 19 de mayo de 2014. Serie C No. 277, párr. 209, y Caso Mujeres Víctimas de Tortura Sexual en Atenco Vs. México. Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas, supra, párr. 316.
8 Caso López Soto y otros Vs. Venezuela. Fondo, Reparaciones y Costas, supra, párr. 349.