A quem compete produzir a prova?
Violência sexual intrafamiliar praticada contra a criança: A quem compete produzir a prova?
Maria Regina Fay de Azambuja
Procuradora de Justiça integrante do Ministério Público do Rio Grande do Sul
A condição de sujeito de direitos é uma conquista recente da criança. A infância, historicamente vista como objeto a serviço dos interesses dos adultos, a partir do século XX, passa a ser compreendida como etapa do desenvolvimento humano. Vários documentos internacionais alertam para a sua relevância, desencadeando a revisão das legislações, condutas e procedimentos adotados com o intuito de garantir direitos àqueles que ainda não atingiram dezoito anos. No Brasil, a Constituição Federal de 1988, em consonância com a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, é o divisor de águas, seguida, em 1990, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. O princípio do interesse superior da criança encontra seu fundamento no reconhecimento da peculiar condição de pessoa humana em desenvolvimento atribuída à infância, valendo lembrar que "os atributos da personalidade infanto-juvenil têm conteúdo distinto dos da personalidade dos adultos", trazem uma carga maior de vulnerabilidade, autorizando a quebra do princípio da igualdade; enquanto os primeiros estão em fase de formação e desenvolvimento de suas potencialidades humanas, os segundos estão na plenitude de suas forças .
Devido à vulnerabilidade, as crianças estão expostas a várias formas de violência, sendo que a violência sexual intrafamiliar é a que traz maiores dificuldades de manejo, responsável por seqüelas que podem acompanhar a sua vida, com reflexos no campo físico, social e psíquico, justificando o envolvimento de profissionais de várias áreas do conhecimento na busca de alternativas de minorar os danos. É comum a violência sexual intrafamiliar praticada contra a criança vir desacompanhada de vestígios físicos, acarretando para o Sistema de Justiça inúmeras dificuldades para desvendar os comunicados e ocorrências que chegam ao Conselho Tutelar e à Delegacia de Polícia, assim como as denúncias que aportam nas Varas Criminais e nos litígios que se deflagram nas Varas de Família, através de disputas de guarda e regulamentação de visitas. A inexistência de vestígios físicos, aliada à falta de testemunhas presenciais, uma vez que a violência sexual intrafamiliar praticada contra a criança geralmente se dá na clandestinidade, levaram os Tribunais a valorizar a palavra da vítima, favorecendo a sua exposição a inúmeros depoimentos no afã de produzir a prova e possibilitar a condenação do réu.
Exigir da vítima a responsabilidade pela produção da prova da violência sexual, através do depoimento judicial, como costumeiramente se faz, não seria uma nova violência contra a criança? Estaria a criança obrigada a depor? Estes e outros questionamentos precisam ser enfrentados sob a ótica da Doutrina da Proteção Integral.
O reconhecimento dos direitos humanos e o avanço dos conhecimentos na área da saúde mental exigem novas formas de proceder visando assegurar à criança o desenvolvimento, em condições de dignidade, passando a ser dever de todos evitar qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (artigos 5º e 70 do ECA). Inquirir a vítima, ainda que através de métodos que visam dar outra roupagem à inquirição , com o intuito de produzir prova e elevar os índices de condenação, não assegura a credibilidade pretendida, além de expor, a criança, a nova violência, ao forçá-la a reviver situação traumática, renovando o dano psíquico produzido pelo abuso. Enquanto a primeira violência foi de origem sexual, a segunda passa a ser psíquica e jurídica, na medida em que se espera que a materialidade, que deveria ser produzida por peritos capacitados, venha ao bojo dos autos através do depoimento da criança, sem qualquer respeito às suas condições de imaturidade. Direito de ser "ouvida", como prevê a Convenção (art. 12), não tem o mesmo significado de ser "inquirida". Considerar a "fala" da criança necessariamente não exige o uso da palavra falada, porquanto o sentido da norma é muito mais amplo, estando a significar a necessidade de respeito incondicional à criança em face de suas condições de desenvolvimento. A inquirição destina-se a produzir prova, podendo levar o abusador, com quem tem laços afetivos, ainda que distorcidos, à cadeia, recaindo sobre a ela a responsabilidade pelo evento. É comum, a criança avistar o abusador, no ambiente forense, por ocasião de sua inquirição, ainda que o depoimento não seja prestado na sua presença, fato que contribui para reacender o conflito e a ambivalência de seus sentimentos, porquanto, em muitos casos, "nutre forte apego pelo abusador, com quem, no mais das vezes, mantém vínculos parentais significativos" . Delegacias de Polícia, Fóruns e Tribunais não são locais apropriados para crianças; são, essencialmente, espaços de resolução de litígios envolvendo adultos.
A perícia, levada a efeito por psicólogos e/ou psiquiatras, especialistas na infância e adolescência, no lugar da inquirição judicial da criança, nos crimes envolvendo violência sexual, com ou sem vestígios físicos, mostra-se a melhor alternativa, permitindo ao Julgador obter a prova através da constatação das lesões ou danos ao aparelho psíquico da vítima, podendo a autoridade judiciária e as partes oferecerem quesitos a serem respondidos pelo Perito . Quando a violência deixa vestígios físicos, não é a autoridade judicial que faz a constatação direta das lesões, na sala de audiências, cabendo ao médico perito examinar o corpo da vítima, em ambiente preservado, descrevendo os achados que serão disponibilizados não só ao Julgador como também às partes, assegurado o contraditório e a ampla defesa preconizados na Constituição Federal.
Sustentamos que a autoridade judicial, diante de pedido dos representantes legais da vítima, da própria vítima ou do Ministério Público, devidamente justificado, de dispensa de prestar depoimento, poderá deferi-lo, levando em consideração as condições pessoais da criança, como idade, aspectos emocionais, existência de vínculo familiar ou afetivo com o réu. Ademais, "a criança pode sempre se recusar a falar diante do juiz", "o direito à oitiva tem como corolário o direito de recusar de exprimir-se, isto é, o direito ao silêncio", garantido expressamente na Carta Maior, inclusive, ao réu (artigo 5º, inciso LXIII, da Constituição Federal) .
Substituir a inquirição da criança vítima de violência sexual intrafamiliar pela perícia psicológica e/ou psiquiátrica, através de profissionais especializados na área da infância, aliada a outros elementos de prova, como o estudo social e a avaliação do próprio abusador (via de regra poupado até mesmo de uma criteriosa avaliação), é o caminho capaz de assegurar à criança a proteção integral que a lei lhe confere, reservando-se a medida apenas aos casos em que a criança manifesta o desejo de ser ouvida pela autoridade judicial.
É momento de pensar em instrumentos para averiguar o dano psíquico , situado no campo da proteção à saúde, em substituição à exigência da inquirição da vítima, quando criança, evitando a reedição do trauma já experimentado. Profissionais de várias áreas começam a perceber a relevância de sua atuação na proteção à criança, repensando procedimentos e investindo em ações abraçadas pelo manto da interdisciplinaridade. A mudança é lenta e há de começar por aqueles que acreditam na possibilidade de avançar, mantendo acessa a chama da esperança e preservando espaço para o sonho de uma vida mais digna à criança.
Matérias relacionadas: (links internos)
» Depoimento Especial
» Doutrina
Referências: (links externos)
» MP-RS - Ministério Público do Rio Grande do Sul