Fortalecimento familiar a partir da ética e dos direitos humanos

Gabriela Schreiner [nota 1]
abril de 2007

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Introdução

As famílias se conformam a partir de suas experiências e culturas, recebem influências e expectativas a partir da sociedade e atendem - ou não - aos modelos idealizados, considerados, construídos e reconstruídos, na evolução dos tempos.

Nas diferentes culturas as sociedades vêem ao longo da história, desenhando modelos "ideais" de família, sustentados por uma rede de mensagens que modelam as subjetividades. Sejam quais forem os valores considerados ou contemplados dentro destas expectativas, é fato que existem, para o público, determinadas "formas esperadas de ser família" e que estes modelos "pesam" sobre indivíduos e sistemas familiares que, mesmo que nem sempre de maneira consciente, empreendem uma busca que não têm fim na tentativa de saciar o desejo coletivo.

Dentro de contextos sócio-culturais e econômicos diversos, em sociedades mutantes, globalizadas e apoiadas fortemente no consumo, sejam quais sejam as formações familiares, estas se vêem frente a distintos e emaranhados desafios que conduzem à necessidade de oferecer respostas frente às expectativas e vulnerabilidades do cotidiano.

Dentro das possíveis respostas, existem aquelas que conseguem levar a soluções que garantem, restituem ou posicionam as famílias em novos níveis de desenvolvimento, mas também àquelas que oferecem riscos e desprotegem a alguns de seus membros ou ao todo familiar.

Apesar do poder aquisitivo ser uma variável importante e que influencia na sensibilidade das famílias frente às vicissitudes do dia-a-dia, em todas as diferentes classes sociais se encontram situações que geram proteção, assim como aquelas que vulneram. Talvez aqui, as possibilidades de obter determinados serviços por conta própria ofereçam oportunidades de respostas mais efetivas, mas não é regra para todas as situações ou famílias. Por outro lado, o baixo - ou inexistente - poder aquisitivo, potencializa as possibilidades de vulnerabilidade, ao conciliar riscos "infra-estruturais" e riscos "estruturais" Por risco "infra-estrutural" consideramos todo aquele que se origina da violação de direitos humanos pela ausência ou insuficiência de recursos básicos de saúde (alimentação, higiene, por exemplo), educação (formal), moradia, descanso, diversão, etc.

Por risco "estrutural" tomaremos aqueles decorrentes das relações pessoais e sociais e que geram ambientes onde são violados direitos humanos e sociais, que impedem que se viva em um ambiente de paz, o pertencer a um núcleo familiar, o desenvolvimento de habilidades e capacidade, o ser compreendido, entre outros.

De fato, em todas as classes sociais é possível encontrar violações de direitos capazes de gerar riscos "estruturais", mas talvez apenas aquelas famílias às quais não lhes restam alternativas sejam as que chegam aos serviços públicos. Além disso - e muito importante - é nestas famílias onde os serviços públicos terminam por desempenhar papéis por vezes ambíguos: em um momento "invadem" a privacidade e em outro não têm suficientes recursos para oferecer apoios adequados e eficazes às famílias.

Os Estados atuais, frágeis em suas capacidades de suporte "estrutural", primam por dedicar seus exíguos recursos a oferecer suportes de "infraestrutura", muitas vezes de tal forma que serão necessários por longos períodos de tempo. Os recursos de apoio às famílias podem ser escassos, mas as expectativas não. O Estado espera - e necessita - muito de todas as famílias que o compõe.

Além das expectativas da Sociedade e do Estado, as famílias devem atender também à sua audiência interna, respeitando direitos humanos de seus membros além de levar a cabo um projeto familiar. Não é uma tarefa fácil.

Quando se pensam ou levam a cabo programas ou projetos de apoio "estrutural" às famílias, em geral têm um limitado alcance, são de curta duração, apresentam deficiências nos processos de avaliação (o que coloca em dúvida sua eficácia), ou então se transformam rapidamente em apoio infraestruturais, muitas vezes substituindo as funções familiares. Porque parece ser tão difícil levar a cabo uma política de fortalecimento das relações familiares? Porque parece ser mais fácil substituir as funções familiares que reconhecer suas capacidades e promover o empoderamento? Podemos afirmar que todas as famílias sabem o que devem e podem oferecer a seus membros (considerando as diferenças de contexto e culturas) para atender às necessidades de cada um, respeitando os diferentes ciclos de vida? Estamos certos de que se as famílias "sabem" e "podem", deixam de realizar o que "devem" sempre com intencionalidade?

Neste artigo propomos refletir sobre a naturalidade na percepção do "saber" das famílias que forma opiniões, influencia decisões, mas também na formulação de políticas públicas, bem como propor caminhos para ações de fortalecimento familiar que busquem o desenvolvimento humano e social, tendo como eixos a ética e o respeito aos direitos humanos.

Expectativas a partir da Sociedade: o "inconsciente coletivo"

Um grande paradoxo que enfrentam as famílias é atender às expectativas de ser suporte, no sentido de sustento, tanto econômico, quanto emocional de seus membros e, ao mesmo tempo, ser responsabilizadas pela "desordem" das sociedades [nota 2].

De um lado parece existir um acordo tácito, não suficientemente discutido ou amadurecido, onde as sociedades supõem que as famílias possuem todo o saber necessário para a criação e do desenvolvimento das próximas gerações, bem como sobre o que diz respeito às relações de gênero e por tanto, não "necessitam aprender" mais nada sobre o que lhes cabe, o que pressupõe que também sabem exatamente o que lhes cabe.

Por fim, o que se espera das famílias?

Antes do século XVIII, das famílias se esperava que fossem unidades básicas de supervisão e contenção, formando mulheres e homens ajustados aos padrões da época. Segundo Heywood (2004), "a autoridade paterna era reforçada pelo controle da propriedade agrícola o domínio de um oficio que poderia ser transmitido aos filhos [homens]" [nota 3].

Esta expectativa inicia uma mudança significativa, mesmo que lenta, com a transformação da família predominantemente agrária para a industrial. Junto com a revolução industrial surge o "amor materno", o "amor conjugal" e com isto as uniões passam a ser fundadas no amor e na liberdade de escolha. É a época do que Fernández chama de "sentimento doméstico de intimidade" [nota 4].

Um ambiente doméstico governado pelos sentimentos ficaria então sob a responsabilidade das mulheres que consolidam seus papéis de esposas e mães [nota 5]. Aos homens, com uma pressuposta complementaridade, lhes cabe o provento do lar e todo o que diz respeito ao mundo público.

Com variações dentro de contextos e culturas e recebendo contribuições a partir dos modelos globalizados e mutantes da modernidade, também existem expectativas sobre as formas de ser de cada um dos papéis formais que conformam as famílias. Estas expectativas têm origens na história, mas não se mantêm as mesmas com a evolução das sociedades. Ser "mãe" na América Latina da atualidade é diferente do ser "mãe" do início de sua colonização, mesmo que as expectativas possam não ter mudado tanto, as realidades são outras e confrontar modelos idealizados com os papéis vividos pode ser difícil e gerar angústias. Diferentes variáveis influenciam nas expectativas: contexto histórico, cultura, religião, classe social, etnia, raça, histórico familiar, nicho ecológico, entre outras, mas ainda assim, os papéis "oficiais" de pai, mãe, filho maior, filho menor, filha maiôs, filha menos, avô, avó, esposo, esposa, tio, tia, irmão, irmã, etc., parecem receber certas mensagens a partir do coletivo e do núcleo familiar, que vão conformando padrões nas formas de ser quando se ocupa cada um destes papéis. Todo aquele ou aquela que não viva seu papel de acordo com o roteiro esperado paga um preço frente à decepção da sociedade.

Mas além dos papéis formais, a sociedade lança expectativa em relação às formas de organização familiar, onde o casamento tem um importante papel. Para Fernández (2006), um casamento é considerado "um acordo entre duas pessoas de diferentes sexos que, livres e reciprocamente, se escolhem em um pacto de amor, na tentativa de desenvolver um projeto de vida comum que implica, em geral, criar e amar a sua descendência" [nota 6]. Mas a autora nos alerta que dentro desta definição bastante compartilhada pela sociedade, se encontram acordos tácitos de complementaridade que, muitas vezes e ainda nos tempos atuais, resultam em situações de conflito das mais variadas ordens.

Como uma das heranças do "amor romântico" dentro dos contratos conjugais temos que: onde há amor, não existe violência.

Este tipo de visão/expectativa impede compreender as diferentes realidades e também fazer frente à violência doméstica e intra-familiar [nota 7].

Outro ponto de influência nos modelos construídos é a crença de que: as mães não abandonam.

Esta visão que tem como base uma idéia ultrapassada dentro do universo acadêmico é ainda presente na Sociedade: o instinto materno e com ele, o mito do amor materno. Este tipo de avaliação, nos impede de fazer frente às necessidades reais de muitas crianças, geradas por mulheres e homens (importante não deixar o homem de lado, já que sem ele não existe gravidez) que não desejam maternar e paternar.

Outra visão romanceada e que desconhece a realidade histórica da formação das famílias em Latino América, é aquela que pressupõe que a informalidade nas relações de casal é algo exclusivo da modernidade.

De fato, os casamentos formais e seus conseqüentes vínculos "oficiais" dia-a-dia perdem terreno para a informalidade nas uniões (ver dados de CEPAL mais adiante), mas isto não é algo inédito em nossa história.

Para Therborn (2006) "o casamento humano é uma instituição sóciosexual, parte de um complexo institucional mais amplo da família" e é o ato sexual o que "sela" o casamento (tanto que a impotência, ainda em sociedades patriarcais, é razão suficiente para a anulação do casamento ou o divórcio). Para o autor, é necessário que se análise o casamento como regulação da sexualidade e do amor romântico, mas que por sua vez "é um arranjo para a procriação, uma forma de cuidar dos frutos da sexualidade, de firmar sua descendência legítima e de definir a responsabilidade última ou principal por sua criação". Quer dizer que o casamento também é uma forma de definir responsabilidade para com as próximas gerações, mas não só, "historicamente têm sido um importante veiculo de integração social e de divisão social". Citando Lévi-Strauss, Therborn compara o desastre que foram as uniões entre descendentes diretos ou próximos - "de uma aldeia, região o raça" - que levaram a rupturas na rede social e o sucesso evolutivo dos "sistemas de intercâmbio de mulheres entre diferentes grupos de descendência masculina". Nisto, o "tabu do incesto" ocupou um papel primordial, como impulso à construção de alianças entre grupos diferentes, fortalecendo a evolução da espécie humana [nota 8].

Agora se o casamento funcionou como integrador social, socializador e permitiu a construção de alianças entre grupos e riquezas, suas dissolução é considerada "um importante indicador de desintegração ou ‘disrupção’ social", afetando dois aspectos significativos da sociedade: "o status social e a formação dos domicílios". Para Therborn, o fato de uma família pertencer à classe "proprietária" é suficiente para que as regras de casamento tenham especificidades onde a existência de herança deve "afetar tanto a idade quanto a freqüência do casamento". Os casamentos são influenciados pelas normas de supremacia masculina, as hierarquias de classe e raça/etnia nas sociedades, que ajudam a estabelecer "relações sexuais hierárquicas entre homens e mulheres" [nota 9].

Para Therborn (2006) "o respeito aos rituais formais de casamento deve variar com a internalização do sistema de valores oficial e com a maior ou menor proximidade dos agentes de controle social", e adicionalmente, a composição de vínculos formais não tem estreita relação com o papel econômico do domicilio: nos casos onde a produção é doméstica, as normas de casamento são mais severas (herança) daquelas encontradas nas economias onde os domicílios são unidades de consumo [nota 10]. O que equivale a dizer que economias globalizadas e orientadas ao consumo, são grandes responsáveis pelas atuais taxas de desunião ou uniões não oficiais.

Nota: vale dizer que a "oficialização" não é garantia de vínculos saudáveis ou duráveis e que os "vínculos informais" não possam ser reais ou perdurar e ser positivos.

Mas a informalidade das uniões não é algo exclusivo da modernidade. Desde o inicio da colonização e em diferentes épocas da construção da América Latina que conhecemos, as relações de casal primaram pela informalidade, o que de alguma forma é herança e parte constitutiva da atualidade.

Therborn (2006) constatou que da totalidade dos nascimentos na capital do México no início de 1900, um terço eram "ilegítimos" e que um terço das mulheres maiores de 15 anos eram casadas. Na mesma época e em todo México apenas 45% das mulheres dessa idade haviam contraído matrimonio e que a porcentagem de uniões sexuais na Cidade do México que eram consensuais chegavam a 80%. Na Argentina do início do século XX, 20% dos nascimentos eram fruto de relações entre pessoas não casadas, enquanto no Uruguai, estes correspondiam a 25% dos nascimentos. Avançando para o interior de Argentina, na região andina, 50% dos nascimentos eram fora do matrimônio. Em Costa Rica as taxas eram as menores da América Latina, mas correspondiam ao dobro da realidade européia da época. Nos países que tiveram escravidão africana, a informalidade foi mantida por leis que, em principio proibiam as uniões entre escravos e ainda depois da abolição da escravatura regularam o casamento "entre iguais", o que fomentou as uniões informais tanto nas classes populares, quanto nos casamentos entre "diferentes" [nota 11].

A informalidade nas relações e o nascimento de filhos e filhas fora de casamentos oficiais não são temas desconhecidos para as famílias da região.

Apesar das mudanças históricas, a evolução do conhecimento, a globalização e as sociedades modernas, ainda assombram o imaginário das expectativas sobre as famílias: a divisão sexual do trabalho, o amor incondicional das mães (que não abandonam), a necessidade de formar um casal oficial (como garantia de continuidade do projeto conjunto) e a impossibilidade de coexistência entre violência e amor no interior das famílias.

Por fim, qual é o perfil atual das famílias em América Latina?

(Em) qual realidade constroem (-se) as famílias em América Latina?

Falar das famílias latino-americanas como um bloco é um desafio, dados os diferentes contextos e idiossincrasia. Mas apesar das diferenças e singularidades existentes, também podem ser encontrados pontos comuns, que influenciam diretamente nos sistemas familiares.

Para uma grande parte dos habitantes de América Latina, a pobreza é uma realidade que influencia nas formas de "ser" e, em especial, nas (limitadas) oportunidades de "tornar-se". De acordo com o Panorama Social de 2006 da CEPAL, "Em 2005, 39,8% da população na região viviam em condições de pobreza (209 milhões de pessoas) e um 15,4% da população (81 milhões de pessoas) viviam na pobreza extrema ou indigência" [nota 12].

Mas para os governos da região de acordo com CEPAL a principal preocupação em relação às famílias "tem a ver com suas transformações estruturais". No estudo da CEPAL por "transformações estruturais" são consideradas a diversidade e os diferentes tipos de família: a redução dos núcleos familiares em participação e tamanho, o aumento das famílias monoparentais e as extensas [nota 13].

As famílias nucleares, compostas por pai, mãe ou ambos com ou sem filhos, continuam sendo predominantes, mas diminuem sua participação que em 1990 era de 63,1% para 61,6% em 2004. Também se registra um aumento nos lares unipessoais de 2,8 pontos percentuais, em especial nas zonas urbanas, o que de acordo com Arriagada se deve em boa parte aos processos de individualização da modernidade, e é mais comum em jovens ou adultos maiores [nota 14].

Famílias nucleares com ambos pais também diminuem em participação que passou de 46,3% em 1990 para 42% em 2004. Por sua vez crescem as famílias chefiadas por mulheres. De acordo com CEPAL, nas zonas urbanas o fenômeno tem maior aumento onde já representam 19% dos lares e famílias. 18,6% das famílias nucleares são monoparentais e destas 86,8% têm chefia feminina e 13,2% chefia masculina. Para o estudo, esse crescimento está diretamente relacionado com o aumento do ingresso das mulheres ao mundo do trabalho remunerado que foi mais intenso entre 1990 e 2005, onde a taxa de participação laboral feminina em zonas urbanas passou de 45,9% a 58,1% "sem dúvidas, o acesso a recursos econômicos que permitam auto sustentarse é fundamental para a constituição de lares e famílias monoparentais" [nota 15]. No mesmo período as famílias extensas e compostas diminuem, com exceção de Cuba.

Particularmente para a região de Latino América existe um componente ainda presente que oferece variáveis significativas dentro das uniões: grandes diferenças de idade entre os cônjuges e o casamento precoce que acaba por maximizar vulnerabilidades físico-emocionais e sociais das mulheres. De acordo com UNICEF (2006), para América Latina e Caribe, 25% das mulheres entre 20 e 24 anos estava casada ou tinha algum vínculo de casal, antes dos 18 anos, sendo que a diferença entre zonas rurais e urbanas é acentuado: 24% e 31%, respectivamente [nota 16].

De acordo com a CEPAL, um eixo de transformação das famílias passa pelas mudanças relativas à vinculação formal nos matrimônios. Em estudos publicados em 2006, certos países atribuem estas mudanças ao produto entre o "maior acesso das famílias a serviços legais integrais", às leis de proteção de direitos, em especial das crianças e adolescentes, à participação das famílias na gestão de projetos sociais e planos de desenvolvimento de diferentes países. Apenas dois países (Honduras e Bolívia) apontam a violência familiar como motivador.

Em 2004, 12% das famílias nucleares eram compostas por casais sem filhos. De acordo com CEPAL (2006) "O exame da informação da última década permite concluir que desde inicio dos anos noventa - com as única exceções de Chile e México - o modelo de família nuclear tradicional já não era maioria na região" [nota 17].

Uma importante observação se faz necessária tanto para a análise do Panorama Social de America Latina 2006 de CEPAL quanto nas pesquisas de residências realizadas nos diferentes países. Nelas não é possível conhecer a realidade das famílias chamadas complexas [nota 18], o efeito das migrações nas composições familiares, bem como das famílias formadas por pessoas do mesmo sexo. A multiculturalidade é uma dimensão muito pouco considerada apesar da magnitude que lhe é própria em nossa região. Isto produz brechas consideráveis e com conseqüências impossíveis de mensurar decorrentes das incidências de políticas públicas "pensadas para as famílias" que consideram apenas certos "modelos familiares" como referência.

É um desafio incorporar uma visão mais ampla de respeito aos direitos humanos e à diversidade transversalmente nas diferentes áreas das estruturas governamentais estatais e regionais, que passem a considerar em discursos e práticas todos os diferentes tipos de famílias e só assim se poderá pensar planos, programas, projetos e leis que considerem ditos princípios e garantam direitos.

O papel do Estado no apoio "estrutural"

As expectativas são elevadas em relação ao papel das famílias no cuidado e atenção aos seus membros. Dentro destas expectativas está o acordo tácito de que as famílias sabem o que devem fazer e de fato, as diferentes configurações familiares detêm saber importante sobre as formas de viver em família e exercem o cuidado, a proteção e estímulo ao desenvolvimento de seus membros.

Este saber deriva basicamente de modelos aprendidos desde os modelos de seus antepassados, a partir do âmbito público que controla e orienta (leis, cultura, políticas, outros modelos) e é variável de acordo com as oportunidades disponíveis, o desenvolvimento pessoal de seus membros bem como a saúde física e mental, para citar algumas variáveis significativas.

Quer dizer que não se "aprende" a ser família em uma educação formal do tema. Da mesma forma não se aprende a ser mãe ou pai, nem marido ou esposa, a não ser na convivência com seus referenciais familiares e sociais em um constante exercício de tentativa e erro.

De fato, as famílias não têm porque saber - no sentido de conhecer para exercer - o como desempenhar seus papéis, ou como desempenhar de maneira mais eficaz esses papéis.

Se por um lado o imaginário popular insiste em acreditar que existe um "modelo certo de ser família" e que "as famílias sabem viver este modelo", constroem-se jogos perigosos que passam por julgar uma suposta intencionalidade, mas que, além disso, retroalimentam o imaginário: como as famílias "sabem" o que devem fazer e não o fazem, não o fazem porque não querem... Por isso não são "confiáveis" ou "dignas" de inversão suficiente, ou apoio adequado.

Como conseqüência direta deste acordo deriva a ausência ou ineficiência de políticas públicas que busquem a promoção das funções parentais, antes que chegue a instalar-se o risco ou se potencie a vulnerabilidade. Como conseqüência da mesma premissa, quando a família "falha" - não atende às expectativas ou coloca em risco seus membros, violando o não protegendo seus direitos - a atenção/apoio [e muitas vezes sustentada por uma necessidade de formulação e execução das políticas relativas: se as famílias "sabem o que têm que fazer" quando falham, "o fazem de propósito".

Cuidado com esta armadilha que dificulta o desenho e aplicação de programas eficazes para apoiá-las "estruturalmente" e intensifica as situações de risco alimentando um sistema de vulneração e abandono.

De fato, muitas famílias desconhecem as necessidades de cada ciclo vital. Muitas desconhecem o que podem fazer ou oferecer para o melhor desenvolvimento de cada um de seus membros e das relações familiares. Outras não podem ter acesso aos meios ou não sabem utilizar-se deles para concretizar o necessário ao cuidado, proteção e desenvolvimento.

Cabe ao Estado um importante papel de quebrar com este sistema que transforma determinadas famílias - aquelas que aparentemente não seguem o roteiro - substituíveis. Quem disse que existe um modelo certo de ser família? Quem disse qual é esse modelo certo de ser família? Quem pode assegurar que determinada família, com o apoio adequado, não pode ser capaz de levar adiante suas funções como tal?

É necessário que se deixem de lado a idealização e o culpar, para que se consigam construir relações fraternas e comunitárias de apoio e suporte mútuo e não mais de substituição ou invalidação.

Faz-se necessário e urgente um processo de maturidade social que passe pela reflexão coletiva rumo a uma nova visão, mais inclusiva, que busque potenciar as capacidades das famílias de Latino América.

Faz-se necessário e urgente pensar políticas públicas que empoderem os membros das famílias e as relações familiares e comunitárias, para que estas possam ser núcleos de desenvolvimento humano e social, sem culpas, com condições e autonomia. Para isto devem ser consideradas as múltiplas alternativas de ser família e necessitam fundar-se no respeito ao modelo que cada família é capaz e deseja construir dentro de sua cultura, potenciando suas capacidades a partir de seu fortalecimento, da promoção da equidade de gênero e geracional, do desenvolvimento de ambientes de paz, democracia e participação intrafamiliar.

Caminhos para construir políticas de fortalecimento familiar [nota 19]

A continuação se encontram alguns pontos que considero importantes na busca de caminhos para o desenvolvimento de ações capazes de empoderar as famílias na construção tanto de projetos de vida comum, como grupo, quanto no respeito e incentivo de projetos individuais de seus membros, fundados na ética e no respeito aos direitos humanos:

Pontos de partida:

  • Levar em conta sempre que não existe um modelo de família adequado ou o modelo certo de família. Além das múltiplas realidades sócio-culturais e étnicas, cada família tem sua própria história e realidade que muda de acordo com sua evolução.
  • Considerar diferentes ângulos e perspectivas de direitos e necessidades: mulheres, homens, meninas, meninos, as adolescentes, os adolescentes, e as e os adultos maiores em todas as ações e diretrizes estratégicas. (garantir que se considere tanto a gênero quanto a geração nas perspectivas).
  • O cuidado e a responsabilidade sobre o desenvolvimento das filhas e filhos é tanto das mães quanto dos pais.
  • Se por um lado o amor não pode ser exigido, a responsabilidade pelos demais, em especial pelas crianças, adolescentes e adultos maiores, pode e deve ser aprendida.
  • Será necessário reconhecer que existem iniqüidades de gênero, entre congêneres e entre gerações, o que requer um análise multidimensional das realidades.
  • As ações locais e de ONGS devem estar em sintonia com as estratégias dos Estados.
  • Transversalizar a perspectiva de equidade de gênero e geração intrafamiliar, em todas as políticas públicas, mas, além disso, analisar e considerar uma visão multidimensional e sistêmica.
  • No desenho de qualquer política pública, sempre considerar as famílias como capazes de fazer frente a seus próprios problemas "estruturais", oferecendo o suporte eficaz: não dependente, que busque emancipação e autonomia.
  • Conhecer e acompanhar os impactos e alcances dos planos e ações (avaliações de impacto multidimensionais)

Alguns caminhos:

  • Conhecer mais e melhor as realidades das famílias (censos de domicílios capazes de demonstrar os diferentes tipos de famílias: recompostas, casais homossexuais, entre outras).
  • Estimular a participação das famílias na formulação das políticas publicas que lhe afetam.
  • Realizar uma avaliação multidimensional das forças das famílias, dos indivíduos e de seus entornos, pondo foco em ações que promovam a autopercepção do potencial.
  • Potenciar o valor das tarefas reprodutivas para toda a sociedade valorizando o papel do pai no cuidado e atenção. Promover a incorporação do homem como protagonista nas tarefas reprodutivas.
  • Fortalecer o capital social familiar, investir em programas que favoreçam as relações pessoais, ampliando os espaços de diálogo e o exercício da democracia intra-familiar, desenvolvendo capacidades de negociação e participação em mulheres, homens, meninas, meninos e adultos maiores.
  • Estimular a participação de crianças e adolescentes também em seus lares, com responsabilidade e garantindo a não violação de seus interesses superiores.
  • Ações que promovam a responsabilidade podem ser primeiros e importantes passos para, a partir da convivência, potenciar o afeto.
  • Promover debates de impacto na sociedade sobre o papel das famílias no desenvolvimento das comunidades.
  • Capacitar operadores e educadores, oferecendo instrumentos e condições de operar sem modelos pré-concebidos, com perspectiva de equidade de gênero e geração, além de visão inclusiva e metodologias de mediação.
  • Incorporar em Planos, Políticas e Programas avaliações de impacto e econômicas, com condições de ser acompanhadas sistematicamente.

Bibliografia

Arriagada, Irma. (2002). Cambios y desigualdad en las familias latinoamericanas. In: Revista de la CEPAL 77. CEPAL, Chile
CEPAL (2006). Agenda Social. Políticas Públicas y Programas dirigidos a las familias en América Latina. In: Panorama Social de América Latina 2006. CEPAL, Chile
CEPAL (2006b). Síntesis del Panorama social de América Latina 2006 - Documento informativo. CEPAL, Chile
Fernández, Ana Maria (1994). La mujer de la ilusión. México, Paidós.
Heywood,Colin (2004). Uma historia da infância. São Paulo, Artmed
Schreiner, Gabriela (2007). Equidad de género dentro de las familias: una propuesta para el desarrollo de la salud mental y el convivo de paz. En: I Jornada Internacional sobre Salud de la Mujer y la Niña - Marzo de 2007 - Congreso de la República del Perú - Lima, Perú
Therborn, Göran (2006). Sexo e poder. A família no mundo 1900- 2000. São Paulo, Contexto
UNICEF(2006). Estado Mundial de la Infancia 2007. UNICEF, NY

 

 

Notas do texto:

1 Abril 2007 - Texto apresentado no Seminário Regional de Capacitação da IFCORELAF: "El Derecho a Vivir en Familia. Acogimiento Familiar y otras alternativas". IFCO-RELAF e Fundación CEPES (Orgs). Mar del Plata, Argentina, 17, 18 e 19 de maio de 2007.
Original em espanhol com tradução ao português.

2 Arriagada, 2004:144

3 Heywood, 2004:144

4 Fernández, 2006:202

5 Op. cit, 2006:203

6 Op cit, 2006:186

7 Para aprofundar mais no tema: Gabriela Schreiner (2007). Violência de Gênero nas Famílias - original em español apresentado na Pre-Jornada de Bioética e Saúde da Mulher - 07/03/2007 - UNIFE - Universidad Femenina del Perú - Lima, Perú - ver em:
http://familiaegenero.blogspot.com/

8 Therborn, 2006: 198-200

9 Op cit, 2006:200

10 Op cit, 2006:200

11 Therborn, 2006:232-233

12 CEPAL, 2006b:5

13 Op cit, 2008:3

14 Op cit, 2006

15 CEPAL, 2006

16 UNICEF, 2006:135

17 CEPAL, 2006

18 Para CEPAL as famílias complexas são resultantes de uma segunda união de algum dos membros do casal, com e sem filhos próprios. (CEPAL, 2006)

19 Schreiner, Gabriela (2007) Propostas apresentadas na I Jornada Internacional sobre Saúde da Mulher e da Menina - Março de 2007 - Congreso de la República del Perú - Lima, Perú - Palestra: Equidad de género dentro de las familias: una propuesta para el desarrollo de la salud mental y el convivo de paz.

 

 

Sobre o texto:
Abril 2007 - Texto apresentado no Seminário Regional de Capacitação da IFCORELAF: "El Derecho a Vivir en Familia. Acogimiento Familiar y otras alternativas". IFCO-RELAF e Fundación CEPES (Orgs). Mar del Plata, Argentina, 17, 18 e 19 de maio de 2007.
Original em espanhol com tradução ao português.

Sobre a autora:
Formada em Matemática/PUC/Brasil/SP e em Ciências Sociais com especialização em Gênero e Políticas Públicas/FLACSO/Argentina. É consultora independente para assuntos relativos à família, gênero, direitos das crianças e adolescentes e políticas públicas no Brasil e na América Latina. Consultora, em 2006, do Instituto Interamericano da Criança e do Adolescente, órgão especializado da OEA, para projetos interamericanos de família. Consultora, em 2008, para projetos de gênero e adoção do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, PNUD, Peru. Consultora, em 2008/2009, para o fortalecimento do sistema de direitos de crianças e adolescentes sem cuidados parentais do Programa das Nações Unidas para a Infância, UNICEF, Peru. É mestranda da FLACSO/Argentina em Gênero e Políticas Públicas, com a tese "Equidad de Género y Políticas Públicas para familias en América Latina. Supuestos y prácticas en Perú y Brasil".
Contato: [email protected] e [email protected]

 

 

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