Fechamento de entidades e programas pelo Prefeito

Fechamento de instituição ou programa oficial de atendimento a crianças e adolescentes por ato unilateral do Prefeito Municipal - Ilegalidade manifesta - Estratégias e propostas para reverter a arbitrária decisão:

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Murillo José Digiácomo
Promotor de Justiça no Estado do Paraná

Uma situação recorrente, em especial quando da assunção de novos prefeitos municipais, é o fechamento, de forma sumária e arbitrária, de entidades oficiais de atendimento a crianças e adolescentes, assim como o encerramento e/ou o corte de subsídios para programas de atendimento com a mesma finalidade, desenvolvidos por entidades governamentais ou não governamentais com atuação no município.

Tais condutas, embora invariavelmente praticadas a pretexto do "saneamento" da "máquina" e/ou das finanças públicas, não raro são resultantes de puro "revanchismo", por terem sido tais entidades e programas criados e implementados ao longo de um outro governo, do qual o novo mandatário não quer deixar qualquer vestígio.

Como resultado, crianças e adolescentes até então atendidas pelas entidades e programas que deixam de funcionar acabam por ter gravíssimos prejuízos a seu processo de formação, o que é agravado pela pura e simples ausência de alternativas - e perspectivas - para lhes garantir a proteção integral há tanto prometida, num retrocesso quanto às conquistas pessoais e sociais que é a antítese não apenas de tudo o que seria de obrigação do Poder Público, para com sua população infanto-juvenil, na forma da legislação específica aplicável, mas do próprio processo de conquistas sociais daquilo que deveria ser um Estado Democrático de Direito, em franca violação, dentre outros, ao disposto nos arts.1º, incisos II e III e 3º, incisos I a IV, da Constituição Federal.

A ilegalidade manifesta de condutas semelhantes, aliás, resulta da violação não apenas dos princípios e fundamentos de nosso Estado Democrático de Direito, que não admite qualquer retrocesso nas conquistas sociais, assim como - como melhor veremos adiante - da intolerável transgressão ao princípio jurídico-constitucional da prioridade absoluta à criança e ao adolescente, mas também de um total desrespeito aos mais elementares princípios que orientam a administração pública, dentre os quais a legalidade, a impessoalidade e, é claro, a moralidade (valendo neste sentido observar o disposto nos arts.37, da Constituição Federal e a art.4º, da Lei nº 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa), tornando o agente público responsável passível de toda uma série de sanções, de ordem civil, administrativa e mesmo criminal.

A reversão de tal situação pode e deve ser promovida pelo próprio administrador, após alertado da ilegalidade e das conseqüências de seu ato, porém, se necessário, deverá ser obtida através da intervenção de outros órgãos, da mobilização da sociedade e, se necessário, por intermédio do Poder Judiciário, junto ao qual se deverá buscar não apenas a restituição das conquistas sociais ao stautus quo anterior, mas também a imposição ao agente responsável pela conduta abusiva e lesiva aos interesses infanto-juvenis, todas as sanções previstas na legislação.

O presente estudo tem por objetivo indicar alguns fundamentos e possíveis linhas de atuação, na busca da efetiva solução do problema resultante e da garantia dos direitos infanto-juvenis violados, objetivo precípuo de toda e qualquer intervenção a ser realizada.

Em primeiro lugar é de se ressaltar que o Prefeito Municipal não pode, de forma arbitrária e unilateral, "fechar" uma entidade ou um programa oficial de atendimento a crianças e adolescentes no município.

A competência (diga-se poder-dever) de formular a política de atendimento a crianças e adolescentes no município, na forma da Lei (art.88, inciso II, da Lei nº 8.069/90) e da Constituição Federal (art.227, §7º c/c art.204, da CF/88), é do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente - CMDCA, que é um órgão deliberativo, de composição paritária entre representantes do governo e da sociedade.

Neste sentido, vale destacar o contido nos dispositivos acima mencionados:

a) Constituição Federal:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
§ 7.º No atendimento dos direitos da criança e do adolescente levar-se-á em consideração o disposto no art. 204.
Art. 204. As ações governamentais na área da (criança e do adolescente) serão realizadas ... com base nas seguintes diretrizes:
I - descentralização político-administrativa...
II - participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis.

b) Lei nº 8.069/90:
Art. 88. São diretrizes da política de atendimento:
I - municipalização do atendimento;
II - criação de conselhos municipais, estaduais e nacional dos direitos da criança e do adolescente, órgãos deliberativos e controladores das ações em todos os níveis, assegurada a participação popular paritária por meio de organizações representativas, segundo leis federal, estaduais e municipais;

 

O Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente possui uma competência Executiva - deliberativa quanto a políticas públicas - TÍPICA, sendo que suas decisões vinculam (obrigam) o administrador, valendo neste sentido transcrever recente acórdão do E. Superior Tribunal de Justiça:

ADMINISTRATIVO E PROCESSO CIVIL - AÇÃO CIVIL PÚBLICA - ATO ADMINISTRATIVO DISCRICIONÁRIO: NOVA VISÃO.
1. Na atualidade, o império da lei e o seu controle, a cargo do Judiciário, autoriza que se examinem, inclusive, as razões de conveniência e oportunidade do administrador.
2. Legitimidade do Ministério Público para exigir do Município a execução de política específica, a qual se tornou obrigatória por meio de resolução do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente.
3. Tutela específica para que seja incluída verba no próximo orçamento, a fim de atender a propostas políticas certas e determinadas.
4. Recurso especial provido (STJ, RESP 493811, 2ª T., Rel. Min. Eliana Calmon, j. 11/11/03, DJ 15/03/04).

 

Importante destacar, a propósito, que o CMDCA não é um órgão "alienígena" à estrutura de governo, mas sim a integra, se constituindo numa instância de exercício do poder diretamente pelo povo, num clássico exemplo de democracia participativa, nos moldes do previsto no art.1º, par. único, parte final, da Constituição Federal:

Art.1º .(...).
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

 

O governo municipal, através dos representantes indicados pelo Prefeito, faz parte do CMDCA, porém suas idéias e iniciativas, no que diz respeito à implementação de políticas públicas em benefício de crianças, adolescentes e suas respectivas famílias (que devem ser a preocupação primeira do administrador, diga-se de passagem, face o princípio jurídico-constitucional da PRIORIDADE ABSOLUTA à criança e ao adolescente, insculpido no art.4º, caput, da Lei nº 8.069/90 e 227, caput, da Constituição Federal), precisam (obrigatoriamente) passar pelo crivo da sociedade, que tem o direito/dever de participar diretamente das decisões (políticas) quanto à política de atendimento à criança e ao adolescente no município.

Vale o registro que uma das idéias básicas da criação dos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente, com participação popular em caráter paritário junto aos representantes do governo, como instância de poder e de decisão política, foi justamente a de evitar que situações semelhantes à inicialmente relatada ocorressem, ou seja, que determinado governante, por qualquer razão, resolvesse "desmontar" uma política de atendimento à população infanto-juvenil em execução, "fechando" entidades e/ou programas oficiais (como os de abrigo, sócio-educativos, de tratamento para drogadição, creches e pré-escolas, orientação, apoio e promoção social a famílias de crianças e adolescentes carentes etc.), deixando "a descoberto" as crianças e adolescentes atendidas.

Qualquer proposta neste sentido deveria ser levada perante o CMDCA onde seria necessariamente DEBATIDA com a sociedade (e não apenas com os representantes desta, até porque o CMDCA precisa ser um órgão transparente e democrático - e não uma espécie de "sociedade secreta", sem uma participação popular efetiva), sendo certo que esta, até mesmo por uma questão de princípio, seguramente não permitiria qualquer retrocesso nas conquistas sociais até então obtidas em benefício da população infanto-juvenil, sendo admissível uma alteração na política de atendimento em execução apenas se isto representasse um avanço em relação às estruturas, programas e serviços existentes.

A idéia básica, portanto, foi fazer com que as políticas de atendimento à população infanto-juvenil se tornassem verdadeiras "POLÍTICAS DE ESTADO" (no sentido amplo da palavra), de modo que sobrevivessem aos mandatos dos governantes e representassem um "crescendo" constante em relação às conquistas sociais, na busca da tão sonhada proteção integral a crianças, adolescentes e suas respectivas famílias.

Assim sendo, não é difícil constatar que a situação resultante da extinção sumária e arbitrária de entidades e programas oficiais de atendimento à população infanto-juvenil, independentemente de qualquer outra consideração, traduz uma ilegalidade/inconstitucionalidade manifesta, pois semelhante decisão não pode ser tomada de forma isolada, pelo Prefeito Municipal e/ou seu "gabinete", cabendo a estes, se assim entendessem necessário, apresentar a proposta ao Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente e debatê-la com a sociedade, devendo isto ocorrer, logicamente, dentro de um contexto de MELHORIA nas condições de atendimento à população infanto-juvenil (nem seria de se cogitar a pura e simples extinção de estruturas e programas sem que outros lhes viessem a substituir).

Há, portanto, apenas para início de argumentação, um "vício de origem" na decisão política quanto à extinção de instituições públicas de atendimento à população infanto-juvenis e/ou quanto ao encerramento de programas oficiais existentes com tal finalidade, pois a legitimidade para sua tomada NÃO PERTENCE ao Prefeito Municipal, agindo isoladamente, mas SIM, na forma dos citados art.88, inciso II, da Lei nº 8.069/90 e art.227, §7º, c/c art.204, da Constituição Federal, É DE RESPONSABILIDADE / PRERROGATIVA DO CONSELHO MUNICIPAL DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE, que, por dever de ofício, deve impedir venha a ocorrer qualquer retrocesso na sistemática de atendimento à população infanto-juvenil no município.

Como mencionado, as entidades públicas e os programas oficiais em execução fazem parte da política de atendimento em vigor no município (que somente poderia ser alterada por decisão formal do CMDCA, numa perspectiva de melhoria da estrutura de atendimento existente), devendo estar, inclusive, contemplado com recursos previstos no orçamento do município.

O puro e simples "fechamento" de entidades e programas, sem a apresentação de qualquer "alternativa" ao atendimento à população infanto-juvenil por estes até então beneficiada [nota 1], se constitui, portanto, num INTOLERÁVEL RETROCESSO na estrutura de atendimento à população infanto-juvenil do município e, por via de conseqüência, nas conquistas sociais alcançadas (de forma lenta, gradual, e à custa de grande sacrifício) em benefício dessa tão negligenciada e "esquecida" parcela da população, numa frontal violação a seus direitos fundamentais e às disposições legais e constitucionais relativas aos princípios da proteção integral e da prioridade absoluta [nota 2] que, na forma da lei, deve ser coibida e, se necessário, como veremos adiante, reprimida com rigor, não podendo de modo algum subsistir.

O CMDCA, diante da notícia da ocorrência de tal situação, agindo inclusive na defesa de suas prerrogativas institucionais e em nome da garantia do Estado Democrático de Direito, tem o dever de providenciar, com o máximo de urgência, a REVERSÃO de semelhante decisão, até porque, como dito, manifestamente arbitrária, ilegal e ilegítima, passível mesmo, como melhor ser abordado a seguir, de conduzir à RESPONSABILIDADE do administrador por ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA, por diversas razões.

Vale mencionar, a propósito, que os integrantes do CMDCA também respondem como "agentes públicos" e "funcionários públicos" na forma do disposto no art.2º, da Lei nº 8.429/92 - Lei de Improbidade Administrativa e art.327, do Código Penal (respectivamente), pelo que, caso venham a se omitir em discutir a matéria e/ou deliberar no sentido de encontrar uma solução para o problema resultante da decisão arbitrária do Prefeito Municipal, poderão ser, assim como este, também responsabilizados administrativa e mesmo criminalmente por sua inércia.

Com efeito, dispõem os arts.4º e 11, da Lei nº 8.429/92:

Art. 4°. Os agentes públicos de qualquer nível ou hierarquia são obrigados a velar pela estrita observância dos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade no trato dos assuntos que lhe são afetos.

Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente:
I - praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência;
II - retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício;
(...).
Art.12. Independentemente das sanções penais, civis e administrativas, previstas na legislação específica, está o responsável pelo ato de improbidade sujeito às seguintes cominações:
I - (...)
III - na hipótese do art.11, ressarcimento integral do dano, se houver, perda da função publica, suspensão dos direitos políticos de 3 (três) a 5 (cinco) anos, pagamento de multa civil de até 100 (cem) vezes o valor da remuneração percebida pelo agente e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de 3 (três) anos.

 

No mesmo diapasão, dispõem os arts.319 e 327, do Código Penal:

Prevaricação
Art. 319. Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal:
Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano e multa.

Funcionário público
Art. 327. Considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública.

Estas disposições legais deixam claro que, se os integrantes do CMDCA, sejam representantes do governo ou da sociedade, deixam de cumprir, por medo, desinteresse, falta de compromisso com a causa da infância e da juventude ou qualquer outro interesse ou sentimento pessoal, sua função primordial, que não é outra senão a de deliberar POLÍTICAS PÚBLICAS para a população infanto-juvenil, assim como FISCALIZAR a atuação do Executivo local, no sentido de sua efetiva implementação e manutenção, estarão, em tese, sujeitos a responder administrativa e mesmo criminalmente por sua omissão.

Importante destacar que a função de membro do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente é considerada, pelo art.89, da Lei nº 8.069/90, como de "interesse público relevante", não podendo ser assim negligenciada por quem a exerce.

Assim é que somente podem integrar o Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente pessoas dispostas a assumir os deveres e responsabilidades inerentes à função, que deve ser orientada à melhoria das condições de atendimento à população infanto-juvenil, verdadeiros cidadãos compromissados com a causa da criança e do adolescente que não podem compactuar com atitudes abusivas e lesivas aos seus superiores interesses, inclusive sob pena de serem eles, também, co-responsabilizados, na forma da Lei.

A propósito, não podemos deixar de consignar que, às disposições legais acima transcritas, deve-se somar o disposto nos arts.5º, parte final, 208 e 216, da Lei nº 8.069/90, que de maneira expressa determinam que os agentes públicos omissos em cumprir suas obrigações para com a população infanto-juvenil, devem responder civil, administrativa e mesmo criminalmente por sua conduta:

Art. 5º. Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.

Art. 208. Regem-se pelas disposições desta Lei as ações de responsabilidade por ofensa aos direitos assegurados à criança e ao adolescente, referentes ao não oferecimento ou oferta irregular:

Art. 216. Transitada em julgado a sentença que impuser condenação ao Poder Público, o juiz determinará a remessa de peças a autoridade competente, para apuração da responsabilidade civil e administrativa do agente a que se atribua a ação ou omissão.

 

No caso dos prefeitos, a todas estas disposições soma-se ainda o contido no Decreto-Lei nº 201/67, que trata da responsabilidade dos prefeitos e vereadores, dentre as quais vale citar:

Art. 1º. São crimes de responsabilidade dos prefeitos municipais, sujeitos ao julgamento do Poder Judiciário, independentemente do pronunciamento da Câmara dos Vereadores:
I - (...)
III - desviar ou aplicar indevidamente, rendas ou verbas públicas;
IV - empregar subvenções, auxílios, empréstimos ou recursos de qualquer natureza, em desacordo com os planos e programas a que se destinam; [nota 3]
(...)
XIV - negar execução a lei federal, estadual ou municipal, ou deixar de cumprir ordem judicial...

Art. 4º. São infrações político-administrativas dos Prefeitos Municipais sujeitas ao julgamento pela Câmara dos Vereadores e sancionadas com a cassação do mandato:
I - (...);
VI - Descumprir o orçamento aprovado para o exercício financeiro;
VII - Praticar, contra expressa disposição de lei, ato de sua competência ou omitir-se na sua prática...

 

Deve-se buscar, portanto, o efetivo respeito às disposições legais e constitucionais que visam a segurar a prometida proteção integral à população infanto-juvenil, que somente será obtida através da implementação de políticas públicas, em caráter prioritário (como determinam, apenas para exemplificar, os arts.4º, caput e par. único, alíneas "b", "c" e "d", 87, incisos III a V, 88, inciso III, 90, 101, 112 e 129, da Lei nº 8.069/90 e art.227, da Constituição Federal), consistentes em ações, serviços públicos e programas de atendimento desenvolvidos fundamentalmente pelo Poder Público municipal (cf. art.88, inciso I, da Lei nº 8.069/90) [nota 4], de acordo com as deliberações do Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente local, que como visto tem o poder-DEVER de encontrar soluções para os problemas enfrentados pela população infanto-juvenil local.

É precisamente a omissão do Conselho de Direitos, aliás, que dá margem a práticas arbitrárias como as mencionadas no início de nossa exposição, devendo ser aquela combatida através da conscientização dos integrantes do órgãos acerca de seu relevante papel dentro do "Sistema de Garantias dos Direitos Infanto-Juvenis", assim como da mobilização da sociedade (tal qual disposto no art.88, inciso VI, da Lei nº 8.069/90), para não permitir que ocorram retrocessos nas conquistas obtidas.

E se tudo falhar, não haverá alternativa outra além do acionamento do Poder Judiciário, não apenas para ver reparado o dano causado, mas também para que todos os agentes responsáveis pela violação dos direitos infanto-juvenis recebam as sanções legais cabíveis.

Com efeito, o que se percebe é que tem ficado muito "barato" para os maus prefeitos e gestores públicos o simples ajuizamento de ações civis públicas na busca da criação e implementação (ou ainda, como no caso mencionado, a restauração) de estruturas e programas de atendimento à população infanto-juvenil.

É necessário, nos exatos termos do previsto na legislação específica, ir além da simples busca da determinação judicial no sentido da criação de tais estruturas e programas, até porque, como visto acima, o "Sistema de Garantias dos Direitos da Criança e do Adolescente" foi concebido para que isto ocorresse "naturalmente", através de políticas públicas que fossem deliberadas e implementadas com a mais absoluta prioridade, tal qual dispõem os citados arts.4º, caput e par. único, alíneas "b", "c" e "d", 87, incisos I a V, 88, inciso III, 90, 101, 112 129 e 259, par. único, da Lei nº 8.069/90.

Se o Poder Público não disponibiliza tais políticas e programas, de forma "espontânea", e nem o faz após "provocado" através de gestões na esfera administrativa pelo Conselho Tutelar (neste sentido, vide o disposto nos arts.136, incisos III, alínea "a" e IX, da Lei nº 8.069/90), ou pelo Ministério Público (vide art.201, inciso VIII, da Lei nº 8.069/90 [nota 5]), não deixando alternativa outra além da propositura de uma demanda judicial, não podemos permitir que esta injustificável e intolerável omissão deixe de receber, como resposta, sanções de natureza civil, administrativa e mesmo penal, tal qual dispõem os citados arts.5º, in fine, 208 e 216, da Lei nº 8.069/90, em conjugação com os demais dispositivos acima transcritos.

Assim sendo, diante a ocorrência de situações como a mencionada, a exemplo de outros casos em que se verifique a prática de desmandos e arbitrariedades por parte do Executivo local, em prejuízo da estrutura de atendimento à população infanto-juvenil do município, torna-se imprescindível a responsabilização pessoal dos gestores que, por ação ou omissão, permitem a violação dos direitos infanto-juvenis, assim como a deflagração de um verdadeiro processo de mobilização social.

Tal mobilização, vale dizer, deve ser desencadeada preferencialmente junto ao Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente local, podendo mesmo resultar na realização de uma audiência pública em que os problemas daí resultantes sejam discutidos e, logicamente, para eles sejam encontradas soluções, sendo inadmissível qualquer retrocesso na política de atendimento à população infanto-juvenil em execução.

Para tal audiência pública, que poderá ser convocada pelo Ministério Público e/ou ocorrer em sede de reunião extraordinária do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, devem ser mobilizados os mais diversos segmentos da sociedade (em especial associações de moradores, de pais, mestres e funcionários, congregações religiosas, clubes de serviço etc), tanto no sentido de sua participação no ato, quanto para que assim tomem conhecimento formal da situação.

De igual sorte, devem também participar (via convocação pelo Ministério Público, se necessário [nota 6]), os gestores das políticas públicas municipais (secretários e chefes de departamento municipal, em especial das áreas de saúde, educação, assistência social, planejamento, finanças etc.), bem como, é claro, o próprio Prefeito Municipal que, em última análise, é o responsável pela execução da política de atendimento à população infanto-juvenil local.

A este ato, para o qual devem ser também convidadas outras autoridades públicas, como os representantes do Conselho Tutelar, Poder Judiciário e Câmara Municipal (dentre outros), podem se seguir eventuais audiências públicas complementares, que servirão para coleta de dados adicionais quanto à realidade do município, em especial no que diz respeito às maiores demandas existentes e à falta de estrutura para o atendimento adequado à população infanto-juvenil [nota 7].

Tais atos devem ser amplamente divulgados, para o que assume especial relevância a cobertura da mídia local, de modo que toda população fique ao menos sabendo de sua ocorrência, até porque, na forma da lei:

Art. 18. E dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.

Art. 70. É dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente.

 

A "luta" pela melhoria nas condições de atendimento e de vida da população infanto-juvenil, portanto é de responsabilidade de toda sociedade, razão pela qual as mencionadas conscientização e mobilização são fundamentais (até porque, como mencionado, também previstas - com sabedoria - pelo art.88, inciso VI, da Lei nº 8.069/90).

O "Sistema de Garantias dos Direitos da Criança e do Adolescente" foi concebido para que os problemas que afligem a população infanto-juvenil fossem enfrentados - e solucionados - por intermédio de políticas públicas, definidas pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente e implementadas pelo Poder Público, com a mais absoluta prioridade, através de ações, serviços e programas voltados a crianças, adolescentes e suas respectivas famílias, não cabendo ao Prefeito Municipal, na condição de mero agente executor destas políticas, alterá-las e muito menos suprimi-las de forma arbitrária.

Cabe fundamentalmente ao Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente - e à sociedade local, que nele tem vez, voz e poder de decisão -, fazer valer suas prerrogativas e deveres para com a população infanto-juvenil do município, impedindo que os direitos a esta assegurados pela lei e pela Constituição Federal, sejam desrespeitados de forma arbitrária, por ação ou omissão do Poder Público.

Embora a rigor o próprio Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente devesse tomar a iniciativa na defesa de suas prerrogativas e na defesa dos interesses infanto-juvenis, o Ministério Público pode - e deve, caso verifique a inércia daquele órgão - deflagrar um processo de mobilização tanto do próprio Conselho de Direitos quanto da sociedade em geral, para que a situação resultante seja resolvida de forma rápida e eficaz.

Caso no entanto sejam esgotados os mecanismos "administrativos" de tentativa de solução do problema não restará alternativa outra além do acionamento do Poder Judiciário, através da propositura de diversas ações (na forma do disposto no art.212, da Lei nº 8.069/90, "para defesa dos direitos e interesses protegidos por esta Lei, são admissíveis todas as espécies de ações pertinentes"), já que não há limites para a defesa judicial dos interesses infanto-juvenis [nota 8].

Dentre as possíveis iniciativas, citamos:

a) ações civis públicas tendo como requerido o município, que de um lado, peçam a declaração da nulidade - por falta de legitimidade - do "ato administrativo" praticado, relativo à extinção da entidade e/ou do programa e, de outro, determinem a restituição das coisas ao status quo anterior, com o restabelecimento do atendimento indevidamente interrompido;

b) ações mandamentais com o mesmo objeto, tendo no entanto como requerido o Prefeito Municipal;

c) ações civis públicas de preceito cominatório, no sentido de determinar que o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente DELIBERE no sentido da implementação de uma verdadeira POLÍTICA PÚBLICA em relação à matéria discutida, com a previsão dos recursos necessários à sua implementação no ORÇAMENTO PÚBLICO MUNICIPAL;

d) ações de improbidade e de responsabilidade, na qual figurem como requeridos tanto o Prefeito Municipal quanto os demais agentes responsáveis pela omissão lesiva aos interesses infanto-juvenis, estando aa incluídos tanto os gestores da área respectiva (Secretários e Chefes de Departamento Municipal), quanto os membros do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente local que também tenham se omitido no cumprimento de seu dever legal e constitucional de deliberar tais políticas e de impedir que os avanços sociais alcançados fossem arbitrariamente extirpados da população infanto-juvenil local;

e) ações civis públicas que, paralelamente às ações de improbidade, tenham por objeto a exclusão, do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, dos seus integrantes que, por qualquer razão, se recusem a exercer a função que lhes foi confiada, seja pelo Executivo, seja - em especial - pela sociedade local.

 

Vários são, pois, os caminhos a trilhar na busca da reversão do quadro apresentado no início da presente exposição, e embora o do entendimento e da composição amigável seja sempre o preferível, não se pode descartar - ou deixar de utilizar, caso necessário - a via judicial, em toda sua amplitude, devendo-se perseguir, em tal caso, não apenas a garantia dos direitos violados, mas a devida - e integral - responsabilização pessoal dos agentes que, por ação ou omissão, causam prejuízos às crianças e adolescentes que, por dever de ofício, deveriam proteger, com a mais absoluta prioridade.

Curitiba, 23 de agosto de 2013
(atualização)

 

Notas do texto:

1 De forma exemplificativa, através da substituição de um programa de abrigo por um programa de casas-lares e/ou de "guarda subsidiada", conforme previsto no art.260, §2º, da Lei nº 8.069/90 e art.227, §3º, inciso VI, da CF.

2 Cf. arts.1º, 4º, caput e par. único, alíneas "b", "c" e "d", da Lei nº 8.069/90 e art.227, da Constituição Federal.

3 O que vale tanto para o desvio de recursos captados pelo Fundo da Infância e Adolescência (FIA), gerido pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (cf. art.88, inciso IV, da Lei nº 8.069/90), com sua utilização em desacordo com o plano de aplicação definido pelo Conselho, quanto para os recursos orçamentários que, na forma do disposto no art.4º, par. único, alíneas "c" e "d" acima referidos, devem ser destinados e aplicados prioritariamente em benefício da população infanto-juvenil.

4 Embora bem-vinda a participação de entidades não governamentais, é preciso deixar claro que a atuação destas deve ser complementar, e jamais "substitutiva" às iniciativas do Poder Público, ao qual compete, em primeiro lugar e acima de tudo, a definição de políticas públicas e a implementação de ações, serviços e programas de atendimento à população infanto-juvenil.

5 Cito este inciso apenas para "resumir", pois existe todo um arcabouço jurídico colocado à disposição do Ministério Público para o exercício da defesa - judicial e extrajudicial - dos direitos infanto-juvenis.

6 Podendo ser para tanto utilizada, pelo representante do Parquet, a prerrogativa contida no art.201, inciso VI e §5º, alínea "b", da Lei nº 8.069/90 (embora esta "convocação", a bem de uma tentativa de solução "pacífica" do problema, deva ser utilizada apenas em último caso, bastando a rigor o convite).

7 Sem no entanto perder o foco central da mobilização inicial.

8 Caso a iniciativa da propositura de tais demandas seja do Ministério Público (nada impede que neste sentido também ajuízem demandas coletivas as associações que preencham os requisitos do art.210, inciso III, da Lei nº 8.069/90), é de todo conveniente a instauração de um inquérito civil ou de um procedimento administrativo investigatório, na forma do disposto no art.201, incisos V e VI, da Lei nº 8.069/90.

 

Sobre o autor:
Murillo José Digiácomo é Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Paraná, integrante do Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Criança e do Adolescente (CAOPCA/MPPR) e membro da Associação Brasileira de Magistrados e Promotores de Justiça da Infância e da Juventude - ABMP.
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