Escuta qualificada de crianças e adolescentes vítimas de violência

Pontos para reflexão e debate:

  • Reconhecimento da possibilidade da realização da escuta da criança/ adolescente vítima de violência por meios alternativos, não sendo "obrigatória" a designação de "audiência" para tanto - a própria escuta da criança/adolescente vítima pode ser dispensada, em sendo possível provar o fato por outros elementos (na forma da constituição federal, todos os meios lícitos de prova são admissíveis em direito);
  • Inclusão da escuta qualificada como parte da política de atendimento à criança e ao adolescente, à qual os membros do "sistema de justiça" devem se adequar e todos os integrantes do "sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente" devem respeitar, inclusive como forma de evitar a "revitimização";
  • Definição de "fluxos" e "protocolos" intersetoriais de atendimento que permitam a realização da escuta qualificada preferencialmente uma única vez, com a tomada de cautelas para assegurar que o ato tenha sua validade reconhecida em todos os processos relacionados ao caso, seja na esfera criminal, seja em matéria de infância, família e/ou cível (as escutas e esclarecimentos subsequentes devem ser efetuadas/obtidas junto aos técnicos que realizaram o ato original);
  • Assegurar que entre o fato e o momento da escuta qualificada decorra o menor período de tempo possível, primando pela realização da diligência a título de "produção antecipada de prova" (deve-se agir com rapidez, porém sem açodamento/precipitação);
  • Habilitação técnica específica para realizar a escuta, considerando, inclusive, as diversas formas de violência e as possíveis interferências externas, que incidem, muitas vezes, para fazer com que a vítima negue o fato ou mude o relato original (necessidade da realização de cursos de qualificação funcional, evitando-se o improviso e o amadorismo);
  • Escuta como "direito", e não como "obrigação" (respeito à condição da criança/adolescente como sujeito de direitos e não mero "objeto" de intervenção estatal ou "instrumento de produção de prova");
  • Necessidade de respeitar o "tempo da criança" (por mais que haja uma preparação prévia, nem sempre a criança/adolescente estará em condições de revelar o que ocorreu na data marcada para entrevista, devendo assim haver flexibilidade para sua realização);
  • Necessidade de respeitar a opinião da criança/adolescente, inclusive o direito de não falar sobre o que ocorreu (a vítima jamais deve ser "forçada" a relatar o que sofreu, sendo necessário, ante sua eventual recusa/resistência em revelar os fatos, postergar/interromper a diligência, reforçando, com eventual apoio da "rede de proteção à criança e ao adolescente" local, o trabalho de preparação, como forma de evitar trauma/constrangimento em decorrência da escuta e a romper o "muro do silêncio" que a mesma ergue em torno do fato - e de si);
  • Necessidade de estabelecer uma relação de confiança com a vítima, de modo que esta se sinta à vontade para revelar o que aconteceu (lembrar que a criança/adolescente, respeitado seu estágio de desenvolvimento e capacidade de compreensão, tem o direito de ser informada e de participar da definição das abordagens/intervenções protetivas junto a ela realizadas - o mesmo valendo para sua família);
  • Necessidade de normatização, a partir da análise da matéria sob a ótica interdisciplinar, estabelecendo alguns parâmetros/cautelas mínimos para o procedimento, respeitada, em qualquer caso, a liberdade de atuação e manifestação sob o ponto de vista técnico dos responsáveis pela escuta (não há uma única "forma" de realizar a escuta qualificada, devendo-se acima de tudo procurar evitar os equívocos que permeiam a matéria);
  • A escuta qualificada deve ser gravada, preferencialmente em vídeo, com a elaboração, ao final, de um relatório ou laudo circunstanciado, que seja o quanto possível conclusivo, sob o ponto de vista técnico, contendo as respostas aos eventuais quesitos formulados pelo juiz e pelas partes;
  • É perfeitamente possível (e necessário) conciliar o "dever" estatal de proporcionar a "proteção integral e prioritária" à criança e ao adolescente (que traz ínsita a promessa de respeito a seus direitos fundamentais, como os direitos à intimidade e à privacidade, bem como de preservar sua integridade psíquica/emocional e coloca-los a salvo de situações potencialmente vexatórias ou constrangedoras - em observância, inclusive, do princípio da dignidade da pessoa humana), com a necessidade da coleta de provas destinadas à responsabilização, em todas as esferas (e com todas as garantias legais/constitucionais), daqueles que violam seus direitos fundamentais;
  • Lembrar que o art. 3º do CPP estabelece que a lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito, nos moldes do preconizado pelo dec. Lei nº 3.689/41 (Lei de Introdução ao Código Civil), que também prevê a necessidade de que, na interpretação de toda e qualquer lei, o juiz deve atender aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum (valendo menção, neste aspecto, ao que dizem os arts. 1º, 5º, 6º 17, 18 e 100, par. único, incisos I, II e IV, do ECA);
  • É preciso, enfim, aperfeiçoar os mecanismos de escuta (e de coleta de provas de uma forma mais ampla), assim como tornar mais céleres e eficientes os processos destinados à responsabilização dos autores de crimes contra crianças e adolescentes, para acabar com (ou ao menos atenuar) os enormes índices de impunidade que, infelizmente, permeiam a matéria no brasil, em frontal descumprimento às normas e princípios aplicáveis. 

Julgados de referência:

  • RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. PRODUÇÃO ANTECIPADA DE PROVA. ART. 156, I, DO CPP. JUSTIFICAÇÃO ADEQUADA. CABIMENTO.
    1. O art. 156, inciso I, do Código de Processo Penal, permite seja a prova produzida de forma antecipada, desde que urgente, relevante, necessária, adequada e proporcional.
    2. Na espécie não se tem como motivação o risco tão somente pelo decurso do tempo, mas a condição psicológica e a necessidade de proteção de crianças, vítimas vulneráveis de crime sexual - justificativa adequada e relevante para a antecipação da prova.
    3. Negado provimento ao recurso ordinário em habeas corpus.
    (STJ. 6ª T. RHC nº 47525/DF. Rel. Min. Nefi Cordeiro. J. em 07/08/2014);
  • Habeas corpus. produção antecipada de prova. atentado violento ao pudor cometido contra infante. decisão que defere antecipação do depoimento da ofendida. medida que se reconhece relevante e urgente. respeito aos princípios do contraditório e da ampla defesa, assim como à garantia do devido processo legal.
    Ordem denegada.
    (TJRS. 7ª C. Crim. HC nº 70031084791. Rel. Des. João Batista Marques Tovo. J. em 13/08/2009);
  • CORREIÇÃO PARCIAL. PLEITO MINISTERIAL DE COLETA ANTECIPADA DO DEPOIMENTO DE PRÉ-ADOLESCENTE TIDA COMO VÍTIMA DE VIOLÊNCIA SEXUAL, MEDIANTE O PROJETO "DEPOIMENTO SEM DANO". ACOLHIMENTO.
    Relevância da postulação, de induvidosa urgência, inclusive para evitar a diluição ou alteração da prova por via do alongamento de tempo entre a data do fato e a de inquirição da vítima. Priorização objetiva de medida judiciária institucionalizada no denominado "Projeto Depoimento sem Dano - DSD", que objetiva a proteção psicológica de crianças e adolescentes vítimas de abusos sexuais e outras infrações penais que deixam graves sequelas no âmbito da estrutura da personalidade, ainda permitindo a realização de instrução criminal tecnicamente mais apurada, viabilizando uma coleta de prova oral rente ao princípio da veracidade dos fatos havidos. Precedentes no direito comparado. Medida concedida para que a vítima seja inquirida em antecipação de prova e sob a tecnicalidade do "Projeto Depoimento sem Dano".
    CORREIÇÃO PARCIAL PROCEDENTE.
    (TJRS. 6ª C. Crim. Correição Parcial nº 70039896659 Rel. Des. Aymoré Roque Pottes de Mello. J. em 16/12/2010);
  • APELAÇÃO CRIMINAL. ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. VÍTIMA CRIANÇA. MATERIALIDADE E AUTORIA COMPROVADAS. LAUDO PERICIAL QUE ATESTA A VIOLÊNCIA SOFRIDA. DEPOIMENTO INFANTIL NA FASE POLICIAL EM HARMONIA COM AS PROVAS COLHIDAS EM JUÍZO. PENA IMPOSTA EM CONFORMIDADE COM AS DIRETRIZES LEGAIS. RECURSO DESPROVIDO.
    1. Não merece prosperar a pretensão absolutória se restaram comprovados nos autos a materialidade a autoria do crime imputado ao apelante.
    2. O exame pericial realizado na vítima no dia seguinte ao ocorrido constatou ruptura himenal e inflamação da vulva, não deixando espaço para dúvidas acerca da ocorrência do crime.
    3. As declarações prestadas pela vítima na fase pré-processual, não obstante tratar-se de uma criança de três anos de idade, mostraram-se coerentes e em plena harmonia com o conjunto probatório consolidado nos autos.
    4. A pena aplicada na sentença seguiu todas as diretrizes do art. 59 do Código Penal, razão pela qual deve permanecer inalterada.
    5. Apelo conhecido e improvido.
    (TJMA. 1ª C. Crim. Ap. Crim. nº 15481/2010, de Imperatriz. Rel. Des. José Luiz Oliveira de Almeida. J. em 13/07/2010);
  • CRIANÇAS E ADOLESCENTES VÍTIMAS DE ABUSO E/OU EXPLORAÇÃO SEXUAL. DEVER DE PROTEÇÃO INTEGRAL À INFÂNCIA E À JUVENTUDE. OBRIGAÇÃO CONSTITUCIONAL QUE SE IMPÕE AO PODER PÚBLICO. PROGRAMA SENTINELA-PROJETO ACORDE. INEXECUÇÃO, PELO MUNICÍPIO DE FLORIANÓPOLIS/SC, DE REFERIDO PROGRAMA DE AÇÃO SOCIAL CUJO ADIMPLEMENTO TRADUZ EXIGÊNCIA DE ORDEM CONSTITUCIONAL. CONFIGURAÇÃO, NO CASO, DE TÍPICA HIPÓTESE DE OMISSÃO INCONSTITUCIONAL IMPUTÁVEL AO MUNICÍPIO. DESRESPEITO À CONSTITUIÇÃO PROVOCADO POR INÉRCIA ESTATAL (RTJ 183/818-819). COMPORTAMENTO QUE TRANSGRIDE A AUTORIDADE DA LEI FUNDAMENTAL (RTJ 185/794-796). IMPOSSIBILIDADE DE INVOCAÇÃO, PELO PODER PÚBLICO, DA CLÁUSULA DA RESERVA DO POSSÍVEL SEMPRE QUE PUDER RESULTAR, DE SUA APLICAÇÃO, COMPROMETIMENTO DO NÚCLEO BÁSICO QUE QUALIFICA O MÍNIMO EXISTENCIAL (RTJ 200/191-197). CARÁTER COGENTE E VINCULANTE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS, INCLUSIVE DAQUELAS DE CONTEÚDO PROGRAMÁTICO, QUE VEICULAM DIRETRIZES DE POLÍTICAS PÚBLICAS. PLENA LEGITIMIDADE JURÍDICA DO CONTROLE DAS OMISSÕES ESTATAIS PELO PODER JUDICIÁRIO. A COLMATAÇÃO DE OMISSÕES INCONSTITUCIONAIS COMO NECESSIDADE INSTITUCIONAL FUNDADA EM COMPORTAMENTO AFIRMATIVO DOS JUÍZES E TRIBUNAIS E DE QUE RESULTA UMA POSITIVA CRIAÇÃO JURISPRUDENCIAL DO DIREITO. PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL EM TEMA DE IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DELINEADAS NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA (RTJ 174/687 - RTJ 175/1212-1213 - RTJ 199/1219-1220). RECURSO EXTRAORDINÁRIO DO MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL CONHECIDO E PROVIDO.
    (STF. 2ª T. R. E. nº 482.611. Rel. Min. Celso de Mello. J. em 23/03/2010).

Murillo José Digiácomo
Curitiba, 23 de outubro de 2015

 

Observação

O texto acima foi extraído da apresentação elaborada pelo Dr. Murillo José Digiácomo, Procurador de Justiça e Coordenador do CAOPCAE/MPPR.

 

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