ECA completa 30 anos de vigência: uma história de estudo, de trabalho e de luta institucional
Valéria Teixeira de Meiroz Grilo [nota 1]
No dia 13 de outubro de 2020 comemoramos trinta anos de vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990), uma lei avançada, necessária e adequada à população infantojuvenil brasileira.
O trintenário Estatuto da Criança e do Adolescente adota a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança (ONU, 1989) e torna concreta a doutrina da proteção integral do artigo 227 da Constituição Federal. [nota 2]
O Estatuto foi um divisor de águas. Crianças e jovens deixaram de ser objetos de intervenção estatal para se tornarem, pelo menos no campo normativo, sujeitos de direitos.
O que tínhamos até a entrada em vigor da Lei nº 8.069/1990 era o Código de Menores (Lei nº 6.697/1979), de caráter autoritário, que etiquetava como "menores em situação irregular" crianças e adolescentes que cometessem infrações ou que estivessem desassistidos material, emocional, afetiva e intelectualmente pela família ou pela sociedade. Claramente, no Código de Menores cuidava-se apenas dos menores de 18 anos, sem se fazer distinção do infrator e do pobre.
Quando me tornei promotora, dois anos antes da publicação do Estatuto da Criança e do Adolescente, já acalentava ideias de que a infância e juventude brasileira não poderiam ser tratadas apenas numa perspectiva repressiva. Trabalhando com o Código de Menores e tendo contato verdadeiramente com a infância da maior parte da população brasileira — bem diferente da infância privilegiada de classe média — experimentei intenso desconforto, por não ver saída na ordem jurídica. A sensação de injustiça, impregnada num país tão desigual e injusto, se intensificou em mim.
A oportunidade de estudar a nova lei surgiu ainda em 1989, com um grupo de colegas do Ministério Público do Paraná bastante interessado na proteção integral. Eu já tinha conhecimento do ECA, mas fui desafiada a me aprofundar num estudo que, além de se tornar um alento, me serviu sobremaneira de orientação nas novas atividades do Ministério Público na área. Esmiuçando os artigos do Estatuto, percebi o quanto avançaríamos na proteção e garantia dos direitos fundamentais para todas as crianças e os adolescentes.
Os direitos arrolados no artigo 227 da Constituição estavam definidos, esquadrinhados e explicados, e havia mecanismos para o Estado, através dos seus Poderes, Ministério Público e toda a sociedade, implementá-los. Com o deslocamento de muitas atividades estatais — antes apenas de trato jurisdicional, executivo e legislativo — para a sociedade civil, vislumbrei a presença da tão decantada democracia participativa.
A partir da publicação do Estatuto, em 13 de julho de 1990, e antes mesmo de sua vigência, tive oportunidade de aprofundar o estudo acerca do ato infracional, das medidas protetivas e socioeducativas e da responsabilidade penal, passando pelas doutrinas que norteavam a atuação da Justiça da Infância e da Juventude. No procedimento para a apuração de ato infracional — que existe quando um adolescente, pessoa entre 12 e 18 anos, comete uma infração penal — foram resguardados, entre outros, dois princípios constitucionais fundamentais, já consagrados para os maiores de 18 anos há muito tempo e importantes para a ruptura definitiva com o Código de Menores: privação de liberdade apenas em caso de flagrante ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária, e ampla defesa.
Evidentemente, pelo perfil autoritário da atuação da Justiça da Infância e da Juventude e pelo desinteresse na promoção social dos vulnerabilizados, o Estatuto da Criança e do Adolescente foi duramente criticado e existia, como até hoje existe, a ideia de impertinência e desajuste para vigência de regras que nada mais são do que produto da civilização dos povos. Na área do ato infracional e da redução de idade para a imputabilidade penal, o sentimento aversivo também se manifesta. O enorme avanço para reprimir as arbitrariedades e os abusos — bem conhecidos por nós todos que trabalhávamos sob a batuta do Código de Menores — desagradou parte expressiva dos policiais e outra menos expressiva de juízes e promotores. A população em geral foi conhecendo o Estatuto aos poucos e, por falta de informações e esclarecimentos, também adotou comportamento de rejeição. Hoje, no quadro que vivemos, de ode ao punitivismo, ainda perdura, infelizmente, a aversão a regras que observam normativa internacional, como as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça de Menores – Regras de Beijing (ONU, 1985), a Constituição e as leis penais, processuais penais e as demais que tratam de ato infracional.
Lembro-me bem dos programas de rádio e de televisão dos quais participava para falar sobre os mitos do trabalho infantil, sobre redução da idade para imputabilidade penal, sobre regras que vinham sendo questionadas e rejeitadas pela população, muitas vezes com suporte em opiniões de jornalistas que nos convidavam para o debate.
Um desses programas foi em 1992, o OM Debate, com o jornalista Mauro Baruque, na Rede OM (atual CNT). No debate, além de mim, estavam o Fernando Francisco Góis coordenador do Projeto Meninos e Meninas de Rua (MMR), o Raul Correia, ex-menino em situação de rua, integrante do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua e a Sarita Tetto Martins, da Secretaria Municipal da Criança e coordenadora do programa SOS Criança da prefeitura de Curitiba. Tratou-se, na verdade, de um palco, montado para desqualificar o Estatuto da Criança e do Adolescente, em um tipo de debate em que ninguém consegue concluir o raciocínio. Naquele programa, a rejeição começava com um tratamento provocativo aos defensores do Estatuto e, então, sem perceber muito bem o que se passava, acabei fazendo uma defesa ferrenha do Ministério Público e do Estatuto da Criança e do Adolescente, o que terminou por solidificar em mim a convicção de que havia ainda muito trabalho pela frente!
O debate, na verdade, se tornou uma exposição de argumentos de duas pessoas sem qualquer conexão. Revendo hoje o vídeo, percebo que este mesmo esforço ocorre atualmente. Há explicação do que contém a lei mas não há ouvidos para a defesa do Estatuto por aqueles que não aceitam que menores de dezoito anos sejam tratados como sujeitos de direitos.
A partir de janeiro de 1992 e até março de 1999 — e também durante quatro meses do ano de 2008 — exerci minhas atribuições, como membra do Ministério Público do Paraná e com outros colegas, no Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Criança e do Adolescente do Estado do Paraná [nota 3]. Naquele período, os estudos e o trabalho diário com o Estatuto da Criança e do Adolescente me propiciaram o exercício árduo e paradoxalmente muito gratificante de tornar palatáveis as regras do Estatuto para aqueles que a ele se opunham e para os que com ele se viram obrigados a trabalhar (governantes, legisladores, juízes, promotores, entidades não-governamentais, conselheiros, policiais, assistentes sociais, psicólogos e tantos outros).
Além disso, duas tarefas diárias de órgão de assessoria a membros do Ministério Público e uma tarefa de atribuição de órgão de execução foram a minha prazerosa faina por mais de sete anos. O Centro de Apoio é o responsável por elaborar a política institucional na área de atuação dos promotores e procuradores de Justiça e por assessorar também os membros nas suas atribuições junto à Justiça da Infância e da Juventude e a outros órgãos, entidades e poderes, tudo em conformidade com Estatuto da Criança e do Adolescente, especialmente com as regras atinentes à proteção integral.
A atividade de elaboração da política institucional — apresentada anualmente ao procurador-geral de Justiça — na área infanto-juvenil era pautada rigorosamente conforme a doutrina da proteção integral, com os objetivos e as ações para sua observância. As atividades de assessoria e remessa de informações — de caráter não vinculativo — aos membros do Ministério Público do Paraná foram concretizadas, principalmente, através do envio de esboços de projetos de leis para implementação das regras do Estatuto aos promotores de justiça, que os encaminhavam ao parlamento municipal; e elaboração de cartilhas e publicação de revistas, sendo, neste item, a revista IGUALDADE o carro chefe.
A IGUALDADE, revista trimestral do Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Criança e do Adolescente, foi publicada de dezembro de 1993 a março de 2008, sendo apresentada com três seções: doutrina, legislação e jurisprudência. A revista tinha uma tiragem de 1.000 exemplares e era remetida aos membros do MPPR e a todos os Centros de Apoio dos Ministérios Públicos estaduais, e estava em muitas bibliotecas nacionais e internacionais. Toda a coleção da revista IGUALDADE está no acervo documental bibliográfico do Memorial do MPPR, disponível para a consulta aos interessados, e pode ser encontrada também no site do Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Criança e do Adolescente.
Há edição especial da revista IGUALDADE, publicada em 2015, comemorativa dos 25 anos do ECA, apenas no formato digital. Lançada nostalgicamente com seções de artigos e jurisprudência — como na sua primeira edição de 1993 — e com acréscimos de outras duas: maioridade penal e boas práticas. A publicação reforça a importância desse periódico emblemático, ao mesmo tempo que repete o objetivo de ser um instrumento de trabalho e estudo para todos os que têm o compromisso de buscar a implementação do Estatuto.
Além de inúmeras tarefas de natureza auxiliar para os promotores e procuradores, o Centro de Apoio atuava como assessor do procurador-geral de Justiça, elaborando os pronunciamentos nos feitos de competência originária e recursal do Tribunal de Justiça do Paraná. Durante os primeiros tempos de vigência do Estatuto, o órgão que julgava os recursos das decisões da Justiça da Infância e da Juventude era o Conselho da Magistratura (herança normativa do Código de Menores). E neste órgão de natureza não jurisdicional, o Ministério Público oficiava através do procurador-geral de Justiça, que nos determinava a elaboração de pronunciamentos. Nesse período, a jurisprudência construída no Paraná teve a firme intervenção ministerial defensora da implementação das regras do Estatuto da Criança e do Adolescente, com respeito à interpretação do princípio da proteção integral.
O trabalho para implantação dos conselhos de direitos e tutelares e a divulgação das novas regras no trato dos direitos das crianças e dos adolescentes ocorreram de modo bastante satisfatório no Paraná, nos anos de 1991 a 1999. Aparentemente – e este diagnóstico me ocorre hoje –, poderíamos talvez ter navegado muito bem se tivéssemos tratado das regras como apenas de caráter técnico-jurídico. Mas a resistência começa e permanece quando há exigência da efetiva aplicação da lei para enfrentar as mazelas sociais das crianças, jovens e famílias pobres. Assim, mesmo hoje, ainda que tenhamos tido avanços com o Estatuto da Criança e do Adolescente — em vista de seu conteúdo normativo, logicamente, e na área de implementação de estruturas essenciais para o funcionamento de órgãos —, permanecemos sem sua integral aplicação, ante a ausência de compreensão de que se trata de uma lei que parte do pressuposto de que a população infanto-juvenil brasileira está em estado permanente de violação ou ameaça de violação aos direitos fundamentais. E a maioria ainda está privada de condições essenciais para sobrevivência com dignidade, porque o conteúdo que se pretende ver executado é de natureza social e, por isso, tem fortes contornos políticos e econômicos.
Assim concluo a minha história de envolvimento com a Lei nº 8.069/1990, expressando alegria pela sua existência – que sem dúvida foi a mola propulsora de avanços na área dos direitos de crianças e adolescentes – mas, ao mesmo tempo, manifestando tristeza por constatar que em seus trinta anos de vigência houve pouca efetividade para minimizar o deplorável estado em que se encontra a nossa população infanto-juvenil.
Não há, entretanto, que se perder a esperança de que um dia o Estatuto da Criança e do Adolescente será totalmente implementado, assegurando-se os direitos básicos nele consagrados, pela consecução de políticas públicas e pelo firme compromisso de todas as instituições de justiça. Como disse Paulo Freire, "num país como o Brasil, manter a esperança é um ato revolucionário".
[Fonte: Memorial MPPR - Artigos & Memórias - 15/10/2020]
Notas do texto:
Dra. Valéria Teixeira de Meiroz Grilo: Ingressou no Ministério Público do Paraná como promotora de Justiça em 13 de junho de 1988. Promovida ao cargo de procuradora de justiça em 30 de novembro de 2010. Aposentou-se em 4 de maio de 2015. Compõe o Conselho Curador do Memorial do Ministério Público do Paraná. (Assista a entrevista)
Artigo 227 da Constituição Federal: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (redação dada pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010). (Constituição Federal - Art. 227)
Nota do editor: A denominação deste Centro de Apoio foi alterada, através da Resolução nº 1.355/2012-PGJ/MPPR de 03 de maio de 2012, para Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Criança e do Adolescente e da Educação (CAOPCAE/MPPR) - devido à unificação das áreas de atuação. (Veja mais detalhes)
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