Depoimento Especial e Perícia Psíquica
Acabando com os preconceitos de sua utilização frente ao Princípio da Proteção Integral à Infância
Denise Casanova Villela
Promotora de Justiça integrante do Ministério Público do Rio Grande do Sul
Ao longo do tempo, o Sistema de Garantias de Direitos, no que tange à criança e ao adolescente, foi sendo aperfeiçoado e passou a oferecer novas técnicas de proteção à infância. Neste panorama se apresentam a perícia psíquica e o depoimento especial.
A UNICEF, vinculada à ONU, refere que a criança ou o adolescente tem o direito de ser ouvido em processo judicial, especialmente, quando for vítima.
Se considerarmos que nem sempre a oitiva da vítima é desejada por esta, sendo tal procedimento entendido por ela como mais uma violação de seus direitos, este depoimento só poderia ocorrer quando o juiz entendesse extremamente necessário.
Uma coisa é a possibilidade de depor em razão do querer da vítima criança, outra até mesmo contrária, é a obrigação deste depoimento para satisfazer o direito de ampla defesa do réu. É preciso esclarecer que o princípio da ampla defesa implica no conhecimento, pelo acusado, de todas as provas contra si arroladas para que possa elaborar uma defesa adequada, não tendo o alcance de retaliar a vítima.
Nos dias atuais não é possível admitir a oitiva tradicional de crianças e adolescentes quando necessitam participar do Sistema de Justiça, como vítima ou testemunha. Sabe-se que, comumente, os espaços judiciais onde as audiências são realizadas têm aspecto austero, o que não colabora em nada para que a criança seja acolhida e se sinta disposta a contar sobre as violências pelas quais passou.
É neste contexto que surge o depoimento especial, como forma de escuta da vítima criança ou adolescente e até mesmo de testemunhas crianças e adolescentes, ou ainda, de pessoas fragilizadas pelas situações vivenciadas.
Esta espécie de depoimento é realizada quando a criança, que figura como vítima ou testemunha, fica em uma sala somente na presença de uma psicóloga ou assistente social, enquanto que o Juiz, o Ministério Público e o Defensor, além do acusado, permanecem em sala de audiência, local diferenciado do primeiro. As salas encontram-se conectadas por um sistema fechado de áudio e vídeo, onde é possível, a partir da sala de audiências, ouvir e ver a criança respondendo, na outra sala, os questionamentos formulados pela assistente social ou psicóloga assim como interagir com ela, fazendo perguntas para o técnico que a acompanha. É o técnico quem entrevista a criança e/ou o adolescente, pois é ele quem detém a técnica para tal. Este depoimento é filmado e o DVD acompanha o processo. Também é conhecido como sistema fechado de TV e tem o objetivo de evitar a revitimização da criança, fazendo com que ela deponha sem a presença física do acusado, protegendo assim a criança e/ou o adolescente em razão de sua situação singular de pessoa em desenvolvimento.
A iniciativa é boa, e o objetivo do depoimento especial, visa à proteção do infante, evitando que fique exposto à presença do acusado e também em razão das perguntas diretas dos representantes das partes, que podem colaborar para sua desestruturação emocional.
De qualquer forma, se pretendemos proteger a criança e o adolescente garantindo seus direitos fundamentais constitucionais e infraconstitucionais, seria adequado buscarmos a quebra efetiva de regras pré-existentes e apostarmos em um futuro mais maleável e permissivo quanto à forma de ouvir esta mesma criança.
Assim, o posicionamento mais adequado às regras de proteção seria o de somente permitir que a criança e/ou o adolescente depusesse, em juízo, utilizando o sistema do depoimento especial, nos casos estritos em que as vítimas quisessem depor em juízo ou cuja necessidade fosse indispensável.
Este recurso não se confunde com a perícia psíquica/psiquiátrica, pois esta é realizada por perito oficial, enquanto que o Depoimento Especial, como forma de escuta judicializada, é feito por psicólogos ou assistentes sociais, ou outros profissionais habilitados, vinculados ao Poder Judiciário.
Também nesta esteira de proteção surge o Centro de Referencia ao atendimento Infanto Juvenil, em Porto Alegre no Rio Grande do Sul que além de contar com os atendimentos de saúde, reúne no Hospital Materno Infantil Presidente Vargas, o Departamento de Polícia da Criança e do Adolescente e o Departamento Médico Legal. O Departamento Médico Legal, por sua vez realiza as perícias físicas e psíquicas. Tal concentração de instituições em um mesmo local tem como grande mérito evitar a exposição da criança na rede de atendimento e dar a esta o tratamento digno e prioritário previsto no art. 227 da Constituição Federal.
A perícia psíquica ou psiquiátrica somente poderá ser procedida por peritos psiquiatras e/ou psicólogos oficiais pertencentes ao quadro de funcionários do Departamento ou Instituto Médico Legal, mesma instituição que realiza as perícias físicas nas crianças e adolescentes vítimas de violência, dando a credibilidade que o Sistema de Justiça necessita para a responsabilização do agressor e proteção da vítima. Estas perícias psíquicas se dividem em dois momentos: o primeiro, onde ocorre a escuta da criança ou adolescente vítima através da entrevista investigativa; e o segundo, a avaliação psíquica da criança. Enquanto que no primeiro momento se ouve a vítima através de uma técnica própria capaz de conferir credibilidade ao relato, que é gravado em DVD e posteriormente acompanha os processos administrativos ou judiciais, no segundo momento, o perito se limita a avaliar a condição psíquica da criança e indicação de eventual atendimento futuro, através de laudo escrito, não havendo, neste, registro visual e de áudio.
Existe, ainda, a possibilidade de o próprio perito ser ouvido, judicialmente, para esclarecimento de dúvidas oriundas das partes e do próprio julgador. Em que pese esta possibilidade legal, os esclarecimentos podem ser encaminhados por escrito ao perito, através de quesitos, com fulcro no princípio da economia processual.
Os critérios para a escuta através do Depoimento Especial, ou da perícia psíquica, devem seguir as regras da entrevista investigativa, visto que esta técnica confere credibilidade ao relato. Assim, o Depoimento Especial pode e deve, quando ocorrer, ser complementar à Perícia psíquica.
Entretanto, um dos mais importantes requisitos é que, tanto a perícia psíquica quanto o depoimento especial, devam ocorrer no máximo até 30 dias após a revelação às autoridades do fato lesivo à criança. Isso porque a memória com o passar do tempo é prejudicada ou até contaminada. Outro ponto importante é que caso a criança seja periciada, para se submeter ao depoimento especial, não deve ser encaminhada a atendimento psíquico, de imediato, pois que o tratamento pode comprometer a memória. Por sua vez, após a sua escuta, o próprio Sistema de Justiça deve encaminhar a criança para a rede de proteção e tratamento.
O depoimento especial pode e deve ser utilizado para a não exposição de crianças e adolescente e de pessoas que se sintam vulneráveis, tanto na condição de vítima como de testemunha. E é neste viés, inclusive, o de testemunha que ele assume especial importância. Nos casos em que crianças sejam testemunhas, há a necessidade de uma escuta mais protetora para elas, e como não são vitimas, a rigor, não há sentido em serem periciadas.
O que se pretende com estes procedimentos é evitar que a vítima criança seja submetida a diversas oitivas consecutivas, sem o cuidado técnico necessário, o que provocaria mais dano do que benefícios para os infantes e suas famílias, obedecendo, assim, o princípio da Proteção Integral da criança e do adolescente.
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Referências: (links externos)
» MP-RS - Ministério Público do Rio Grande do Sul