Ao melhor interesse da criança: 30 anos do ECA e a atuação do MPPR
Ao melhor interesse da criança: 30 anos do ECA e a atuação do MPPR [nota 1]
Rodrigo Bonatto Dall'Asta [ * ]
1. Introdução
Desde que o Brasil deixou de ser colônia de Portugal, as constituições brasileiras nunca deram a devida atenção às crianças e aos adolescentes, com exceção da Constituição Federal de 1988. Apoiando-se na mais recente Carta Magna, em julho de 1990 foi publicada a Lei nº 8.069, conhecida como Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a qual trouxe uma proteção diferenciada aos indivíduos nesta fase tão delicada da vida. Para compreender o avanço que essa legislação representa, é necessário entender o conceito histórico de infância, verificando a maneira como diferentes sociedades encaram o período de desenvolvimento humano anterior à idade adulta.
A discussão histórica servirá como pano de fundo ao trabalho do Ministério Público do Paraná na área da infância e adolescência, pois permeia a repressão do Estado como remédio à criminalidade infantil, avançando para a compreensão desta criminalidade como consequência da desigualdade social.
2. Uma pequena história da infância
A infância nem sempre teve a mesma conceitualização atual: como uma etapa da vida que exige todos os cuidados para um desenvolvimento saudável e regular. No período clássico, entre os gregos, por exemplo, ela era muito ligada à educação, seja a militar espartana ou a intelectual ateniense; já durante a idade média, essa relação se perdeu e a infância se confundiu com a vida adulta. Nessa época, a partir de sua independência fisiológica, a criança tornava-se companheira natural dos mais velhos, uma espécie de “mini-adulto” (ARIÈS, 1986, p. 276).
O sociólogo francês Ariès aponta que a transformação do conceito de infância para o atual começa na idade moderna, quando a educação passou a receber atenção especial no desenvolvimento das crianças. Consequentemente, a família também sofreu modificações, passando de uma instituição mais ligada ao patrimônio para se estruturar em torno dos infantes, enfatizando o amor familiar. Nos séculos posteriores, principalmente no XIX, com o estabelecimento das diversas áreas do saber, a pedagogização das crianças cresceu com atenção às questões de cuidados higiênicos e de proteção ao mais jovens, diferenciando-os do mundo adulto.
Não é que não houvesse um sentimento em relação aos recém-nascidos e pequenos, porém, devido a uma mortalidade extremamente alta nessa faixa etária, havia um certo receio ou barreira em se afeiçoar a eles. As melhores condições de vida e o aumento da expectativa de que os infantes sobrevivessem podem explicar a transformação na relação com a infância, juntamente com as questões culturais e educacionais já citadas.
Aproximando-se do sentimento atual, o cuidado com o desenvolvimento psicossocial da criança é aprofundado durante o século XX, separando-o em etapas e a partir de uma divisão de gêneros. Nisso, discute-se o papel do Estado na garantia desse processo e a preocupação com as diferentes condições de realidades familiares diversas.
Vale notar que a construção da infância não é linear e é marcada por outras questões que não apenas a temporal. Por exemplo, depende de outros recortes como etnia, gênero e classe social (MACHADO, 2017, p. 18). Uma vez ligada à educação e considerando que a instrução era destinada às classes mais altas nas sociedades modernas, o trabalho de Philippe Ariès demonstra que noção de infância que se confunde com a vida adulta permaneceu entre populares até idos do século XIX.
No Brasil já independente, a problemática da infância como política pública surge timidamente com a Constituição de 1824, que afirmava que “a instrução primária é gratuita a todos os cidadãos”. Na prática, isso não se confirmou. Enquanto a prioridade era a educação secundária e superior, visto a necessidade da chamada construção da nação [nota 2], o estabelecimento da educação primária nas diferentes vilas se mostrou dificultosa e não foi alvo de interesse dos administradores públicos, deixando a educação primária nas mãos de iniciativas privadas, casas de caridade e dos próprios professores (GONDRA e SCHUELER, 2008, p. 29). No Paraná, os relatórios de 1859 do Inspector Geral de Instrucção Publica explicitam as condições e cifras do ensino primário público na província: 45 instituições primárias e 6 secundárias, em sua maioria funcionando dentro das casas dos próprios professores. Segundo o relator, a população das escolas públicas e particulares foi de pelo menos 1.554 menores, para uma população de 84.355 almas (PARANÁ, 1859, p.38).
A proclamação do governo republicano significou também uma transformação importante na atenção à infância durante a Primeira República ou República Velha, devido à industrialização e à luta de operários pelo fim do trabalho infantil. Este, apesar de prática comum entre camponeses até recentemente, torna-se preocupação pela extensiva utilização da mão de obra infantil em fábricas do período, comum em tais processos, como, por exemplo, a Revolução Industrial na Inglaterra. A alta mortalidade e a exploração da mão de obra infantil foram alvos de preocupação nos movimentos operários. Sob o novo governo, o trabalho para aqueles menores de doze anos foi proibido a partir de decreto vigente entre 1891 e 1927, o que, na prática, também falhou em ser aplicado. Seguindo uma ideologia de trabalho como instrumento pedagógico, as crianças pobres podiam ser enquadradas em leis contra a vadiagem, existentes na legislação da Primeira República. (MACHADO, 2017, p. 17). [nota 3]
Com a crescente organização da classe proletária no Brasil, durante as grandes greves de 1917 defendeu-se a proibição do trabalho para menores de quatorze anos e do noturno a mulheres e menores de dezoito anos. Em decorrência da pressão de trabalhadores e da iniciativa de certos indivíduos, em 1927 surge o primeiro Código de Menores do Brasil, no qual a infância e a adolescência passam a ser abordadas fora de uma perspectiva criminal tradicional e incorpora-se o discurso da educação como salvação (MACHADO, 2017, p. 18). Também passam a ser alvo da tutela do Estado, com Getúlio Vargas, a proibição de trabalho infantil por menores de quatorze anos e algumas regras referentes ao trabalho noturno (apenas dezesseis anos) e de insalubridade, proibidos até os dezoito anos. Durante a Ditadura Militar, na Emenda Constitucional de 1969 a idade mínima para o trabalho volta a ser de doze anos.
A Primeira República inseriu na legislação a possibilidade de prender indivíduos entre 8 e 14 anos, desde que comprovada a ausência de discernimento (o princípio raciológico orientava a criminalística do período), terminando com o estabelecimento, pelo Código de Menores de 1927, da maioridade penal aos 18 anos. As legislações seguintes mantiveram a lógica correicional com a intervenção do Estado direcionando adolescentes a lugares específicos, como reformatórios.
Essa longa lógica punitivista que guiou a atuação dos membros do Ministério Público do Paraná durante todo o século XX quebra-se um pouco com o Estatuto da Criança e do Adolescente e sua inovação no trato com a infância e a adolescência. O paradigma inaugurado pelo ECA, com base na Constituição de 1988, é o de jovens como sujeitos de direitos, em que não apenas os jovens em situação precária ou ligados à delinquência são alvos da tutela do Estado (elimina-se o termo “menor”), mas todas as crianças devem ter o desenvolvimento biopsicossocial como responsabilidade da família, do Estado e da sociedade, e são envidados esforços para que a legislação funcione, evitando-se as medidas de internação. [nota 4]
Apesar de avançado, o novo regramento enfrenta uma tradição de penalização da criança e do adolescente em situação de delinquência, além da própria necessidade de aprimoramento da lei. São notórios, no entanto, o impacto e a inovação que o Estatuto trouxe à realidade da infância no Brasil.
3. Os antecedentes e a tramitação do ECA
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 inaugura novos marcos legislativos e protetivos em diversas escalas. É a primeira vez que a criança é mencionada como sujeito de direitos. Anteriormente, a Constituição de 1967 estabelecia apenas a proibição do trabalho infantil para menores de idade (art. 158, X e art. 170, parágrafo único), enquanto o Código de Menores de 1979 era voltado, principalmente, para punir adolescentes em conflitos com a lei, como o seu art. 1º muito bem define: “Art. 1º - Este Código dispõe sobre assistência, proteção e vigilância a menores: I - até dezoito anos de idade, que se encontrem em situação irregular; II - entre dezoito e vinte e um anos, nos casos expressos em lei.” (Lei nº 6.697/1979). É com relação a essa perspectiva punitivista que a Constituição da República de 1988 inova no tratamento da infância: em seus artigos 226 a 230, estabelece diretrizes de independência e respeito à dignidade da família e de seus membros, com destaque para as crianças e os idosos.
As discussões internas se coadunam às externas: a principal mudança que o Estatuto trouxe foi na doutrina da legislação. Segundo Nelson Aguiar, um dos idealizadores do projeto, o Estatuto nasce esposado da doutrina de proteção integral, como oposição à da situação irregular e da patologia social do Código de Menores (Diário do Congresso Nacional, 29 de julho de 1990, p. 62). Tal preceito provém de discussões internacionais sobre a questão da infância, principalmente inspirada na Convenção dos Direitos da Criança, de 1989. Ratificada por 196 países, inclusive o Brasil, tinha por base a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 [nota 5] e a Declaração Universal dos Direitos da Criança de 1959 [nota 6] e por fundamento a participação ativa dos Estados Partes no desenvolvimento livre da criança, com centralidade na família, cabendo aos operadores do Direito manter o controle de convencionalidade. Segundo o artigo 3, ponto 2 da Convenção:
Os Estados Partes comprometem-se a assegurar à criança a proteção e o cuidado que sejam necessários ao seu bem-estar, levando em consideração os direitos e deveres de seus pais, tutores legais ou outras pessoas legalmente responsáveis por ela e, com essa finalidade, tomarão todas as medidas legislativas e administrativas adequadas (Convenção dos Direitos da Criança, 1989, art 3, II).
Após a promulgação da Constituição, vários grupos da sociedade civil e do legislativo [nota 7] buscavam adequar-se à nova realidade constitucional, mediante a aprovação de uma nova legislação para crianças e adolescentes que superasse a relação punitivista e inefetiva do Código de Menores. De tal forma, foi intentado o Projeto de Lei nº 1506/1989, um Estatuto de Direitos da Criança e do Adolescente, pelo deputado federal Nelson Aguiar (PDT/ES) [nota 8], que viria a ser incorporado posteriormente ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Outro PL sobre a área, o nº 4.371 de 1989, de autoria do deputado federal Gandi Jamil (PFL/MS), que visava isenção fiscal a pessoas jurídicas que destinassem parte da renda no auxílio à área da infância, apresenta a questão da alta delinquência infantil no final da década de 1980 (CÂMARA DOS DEPUTADOS, pp. 349-350). Há também uma forte atuação na construção do documento por parte de setores organizados da sociedade civil interessados no presente e no futuro das crianças e adolescentes brasileiros, assim como uma pressão pela apreciação do Estatuto pelo Congresso Nacional.
Telegrama enviado ao Deputado Federal Paes de Andrade.
(Fonte: Prioridade Absoluta)
Filho de muitas mães e pais, o ECA foi apresentado pelo senador federal Ronan Tito (PMDB/MG), por meio do Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 193/1989, em 30 de junho de 1989. Após uma série de discussões e incorporações de emendas ao texto, a redação final foi apresentada pela Comissão Temporária em 25 de maio de 1990 e despachada para a Câmara dos Deputados no mesmo dia, onde foi renomeada como Projeto de Lei nº 5.172/1990, por sua vez encaminhado para a apreciação da Comissão Especial da Criança e Adolescente, sob presidência da deputada federal Sandra Cavalcanti. Levado ao Plenário da Câmara em 28 de junho, o PL foi votado sob regime de urgência e devolvido no mesmo dia ao Senado Federal, onde foi aprovado no dia seguinte, também em regime de urgência, pela Comissão Temporária estabelecida. Finalmente, o Estatuto da Criança e do Adolescente foi remetido à Presidência da República em 12 de julho de 1990, sendo sancionado pelo presidente Fernando Collor de Mello no dia seguinte, sem vetos.
4. A mudança na prática: a atuação de promotores com a infância e a juventude antes e depois do ECA
Nas quase cinquenta entrevistas do programa REConto [nota 9] realizadas de setembro de 2018 a março de 2020, o trabalho ministerial na área da infância e da adolescência foi citado com bastante frequência.
O Código de Menores de 1979 foi o principal instrumento jurídico daqueles que entraram na carreira de promotor de Justiça antes de 1990. Apesar da legislação ser muito mais ligada à ideia de penalização, alguns agentes do MPPR foram criativos no sentido de evitar a internação em alguns casos e atuar com a infância para preservar o indivíduo e garantir as condições para o seu desenvolvimento. Um exemplo disso foi relatado pelo então procurador de Justiça Carlos Aldir Loss, que contou sua experiência como promotor de Justiça na comarca paranaense de Astorga. Acostumado a receber a população em seu gabinete, acabou travando conversa com um garoto aproximadamente 12 anos, descrito pelo entrevistado como um menino perdido, solitário, que praticava pequenos delitos, não respeitava as autoridades e fugia da escola. Conhecido por “Diabo Loiro”, chegou ao gabinete de Loss por causa de alguma contravenção.
Em seu relato, Loss não se recorda do nome verdadeiro do garoto, mas se lembra do impacto positivo que causou na vida do rapaz. Numa das muitas vezes que o Diabo Loiro chegou ao escritório do promotor, este tomou a decisão de ouvi-lo: “E o nosso menininho, o Diabo Loiro, conversei com ele, dadas as vezes que me levaram ele lá. Piá, vem cá, do que você gosta? O que você quer? Ele disse: ‘ah, eu gosto muito de cavalo’. O que você faz com um cavalo? ‘ah, eu quero montar cavalo’“. [nota 10]
Conhecendo o interesse do garoto pela atividade equestre, o promotor acionou seus contatos na comarca e conseguiu uma chance para o Diabo Loiro realizar seu sonho no Clube de Boiadeiros de Astorga:
Puseram o menino lá, ensinaram-no a cuidar de cavalo, dos animais, dar de comer, todos os que tinham lá. Dois anos [depois], quando saí de Astorga, já estava em Curitiba, encontrei um amigo de lá que me disse: “esse moleque deu bom, doutor, virou peão de rodeio, já foi campeão em Astorga e em São Paulo.” [nota 11]
A decisão do promotor de Justiça não seguiu a letra dura da lei, segundo o próprio, pois pela legislação da época, as ações do Diabo Loiro justificariam sua internação pelos furtos e por agressão a uma colega. Ao oferecer-lhe uma oportunidade, no entanto, o promotor de Justiça permitiu uma importante mudança de rumo na vida do menino.
Outro exemplo de trabalho com a infância foi do procurador de Justiça Luiz Francisco Fontoura, que foi ativo na área como promotor de Justiça em comarcas do interior e também na criação do atualmente denominado Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça (CAOP) da Criança e do Adolescente e da Educação, unidade do MPPR que auxiliou na criação de diversos Conselhos Tutelares pelo Paraná com o ECA. Quando era promotor em Colombo, região metropolitana de Curitiba, acompanhou a história de “Luizinho Gato”, garoto que praticava pequenos roubos, mas nunca atentara contra a vida de ninguém. Segundo Fontoura, “materialmente ele incomodava, mas pessoalmente nunca ele tocou em alguém. Ele era o ladrãozinho que ia se tornar profissional nesse ramo caso não ultrapassasse essa vida”.
Num final de semana, encontraram um cadáver com sinais de latrocínio, cuja culpa se atribuiu a “Luizinho Gato”. O garoto assumiu a responsabilidade perante as autoridades policiais, mas mudou sua declaração em juízo, afirmando ter sido torturado para que assumisse a autoria do crime. No entanto, a condenação já estava encaminhada pelo promotor, quando outros jovens se encontraram com Fontoura para que um deles confessasse o crime. Incentivado pela namorada e por um amigo, o verdadeiro responsável deu detalhes que fizeram com que o agente do MPPR se pronunciasse pela absolvição de “Luizinho Gato”. Pedir a absolvição do réu a essa altura do processo causou certa comoção nas autoridades: a própria Procuradoria-Geral de Justiça emitiu parecer contrário à decisão do promotor, mas, na instância superior, o desembargador Eros Gradowski – antigo membro do Ministério Público nomeado ao cargo da magistratura pela vaga do quinto constitucional – foi o relator do caso e admitiu a absolvição em favor de Luizinho.
A história contada por Fontoura sobre “Luizinho Gato” é uma amostra de como a legislação tratava as crianças e adolescentes e o que os membros do MPPR podiam fazer para ajudá-los. Tendo como resposta da Justiça apenas a internação, muitos deles se profissionalizaram no crime, cruzando a linha apontada pelo agente da lei. Além disso, é um testemunho de como o promotor desenvolveu sua vocação na área da infância. Com a promoção para Curitiba, Fontoura passou a atuar na Promotoria da Infância, onde trabalhou por doze anos até ser promovido ao cargo de procurador de Justiça.
A implementação do ECA enfrentou muita resistência. Segundo Fontoura, o que havia era uma intenção de ver o jovem “massacrado” e a única ação era a do recolhimento das crianças e dos adolescentes, paradigma que estava sendo rompido com uma proteção mais efetiva.
Como a mudança trazida pelo ECA era radical, foi necessário haver um período de adaptação. Com muito estudo, Luiz Francisco Fontoura combatia, nos processos, para que crianças e adolescentes não fossem mais assistidos apenas na Vara de Menores, mas nas Varas de Família. Principalmente aqueles que estivessem em situação de risco.
A atuação do Ministério Público foi notória no período de redemocratização do país e durante os trabalhos da Assembleia Constituinte, a exemplo do que se viu no I Encontro Nacional de Procuradores-Gerais de Justiça e Presidentes de Associações do Ministério Público, realizado em 1986 na capital paranaense. A maturação de diversas iniciativas anteriores resultou, ao fim do evento, no documento denominado Carta de Curitiba, que serviu de base para fortalecer o papel do Ministério Público na Constituição Federal de 1988 (Resende et al, 2020).
Como relata o procurador de Justiça Olympio de Sá Sotto Maior Neto, o trabalho do MPPR não podia ser diferente com as discussões que precederam o ECA. A novidade do Estatuto foi de prever direitos aos infantes, diferentemente do Código de Menores, que garantia apenas o direito às crianças e adolescentes a receberem assistência religiosa. O trabalho de muitos promotores de Justiça em favor dos jovens é anterior à legislação para este público específico, a exemplo do que explicam Loss, Fontoura e Olympio. A expertise adquirida com isso gerou resultados diretos, conforme esclarece Olympio:
Eu esqueci de dizer uma coisa importante: embora meu pai fosse servidor público da Assembleia [Legislativa do Paraná] e minha mãe professora, ela também foi inspetora regional de ensino. Quando ambos se voluntariaram na Vara de Menores de Curitiba para realizar estudos sociais para lares substitutos, que era feito por comissários sem nenhuma remuneração, às vezes, ia junto com eles, acompanhava isso de retirar das famílias, já vítimas de uma estrutura social injusta. Uma regra que me orgulho muito na vida de ter feito no Estatuto foi que não pode só justificar a destituição do pátrio poder apenas por falta ou carência de recursos, que nessas hipóteses, a criança e o adolescente devem ser mantidos na família de origem e a família encaminhada a programas oficiais de auxílio. [nota 12]
Assim como seu progenitor, Olympio tornou-se também comissário ao completar 18 anos. Quando ingressou no Ministério Público, teve contato com a Vara de Menores, mesmo que esta não fosse, conforme assevera, uma área de destaque da instituição e nem do Poder Judiciário. Em sua entrevista ao programa REConto, o procurador de Justiça registra críticas sobre as condições de atuação na Vara de Menores sob a legislação remanescente do Regime Militar. A internação, que era a regra, foi transformada com a Constituição, que a tornou excepcionalidade. Quando atuava na Vara de Menores, os esforços do então promotor de Justiça foram no sentido de analisar em que condições estavam os jovens que eram detidos pela polícia, pois eles estariam sendo escolhidos de maneira arbitrária. Dentro de uma delegacia, que aparentava ser de primeiro mundo, os adolescentes tomavam água do vaso sanitário, além de submetidos a outras violências. A interdição da delegacia foi aceita e o espaço só foi posto novamente em funcionamento com um serviço de recepção e triagem de menores, o SETREM, equipe composta por médicos, advogados, enfermeiros, assistente sociais, psicólogos, etc. Dentre eles, Olympio menciona a atuação do ex-procurador-geral de Justiça, Ivonei Sfoggia, como servidor e advogado dentro do Instituto de Assistência ao Menor.
É importante mencionar o caso da criação do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça da Criança e do Adolescente a partir da Resolução PGJ nº 337, de 4 de maio de 1990, na gestão do procurador-geral de Justiça Luiz Chemim Guimarães:
Quando o presidente [do Brasil] era o Fernando Collor de Mello e eu era o do Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais, ele me convidou para ir a Brasília conversar com ele. Eu achei conveniente convidar os outros procuradores-gerais, mesmo que ele não houvera estendido o convite. Fomos em cinco procuradores-gerais, os vizinhos de São Paulo, Mato Grosso do Sul e Santa Catarina e o da Bahia. Quando chegamos no Palácio [da Alvorada], o presidente estava lá de pé junto a seu ministro da Justiça, o Coronel Jarbas Passarinho, nos esperando. Nos recebeu com uma fidalguia incrível. Nos sentamos e ele disse que chamou o Ministério Público porque queria resolver um problema do Brasil através do MP, o dos meninos de rua. Começou a falar do assunto com boa desenvoltura, como se tivesse estudado o assunto e eu também me entusiasmei porque também me preocupo com as crianças, principalmente as carentes. [...] Ele disse que ia criar o Ministério da Criança e do Adolescente, tive uma boa impressão dele. Porém, ele não chegou a criar, pois logo foi defenestrado do cargo. Não abandonamos a ideia e aí eu cheguei em Curitiba e criei a Promotoria [o CAOP] em Defesa da Criança e do Adolescente, que funciona até hoje. (Luiz Chemim Guimarães em entrevista ao REConto, 2018, 48:25-50:53)
A mencionada resolução ainda estabeleceu que cada comarca do estado teria ao menos um promotor de Justiça responsável pela defesa de crianças e adolescentes, atribuindo ao CAOP a responsabilidade de criar estratégias de atuação institucional e participar do planejamento de políticas públicas na área.
O depoimento da Dra. Valéria Teixeira de Meiroz Grilo reflete mais a preocupação com a mudança cultural do que com o pedantismo jurídico, buscando incorporar uma nova participação de órgãos públicos e órgãos autônomos em relação ao Executivo na renascente democracia brasileira. Esse movimento, segundo a procuradora de Justiça aposentada, enfrentou certas dúvidas. A sociedade, pouco acostumada a participar ativamente das políticas de Estado, não entendia como tais órgãos poderiam propor ações ou tomar decisões na área. Nas palavras da doutora, simulando essa preocupação: “Como é que a sociedade vai decidir o que o juiz decide?” [nota 13]
A novidade jurídica inaugurada com o ECA impactou também a atuação de promotores de Justiça para além da área criminal na relação com a infância. Há a substituição da figura do menor de idade, ligada à ação criminal, pela criança e o adolescente no sentido mais amplo. O Ministério Público do Paraná, a partir do estudo do Estatuto pelo CAOP da Criança e do Adolescente, passa a atuar em outras áreas, exigindo que o Estado cumpra seu papel constitucional no desenvolvimento dos mais jovens, garantindo-lhes, junto à família, o direito à educação, à saúde, ao lazer, etc.
O cuidado também aparece na atuação da procuradora de Justiça Rosana Beraldi Bevervanço, especializada na área da pessoa com deficiência que, durante seu trabalho no CAOP da Criança e do Adolescente, passou a olhar a individualidade dos jovens. Em alguns casos de adolescentes em conflitos com a lei, a então promotora percebeu que era possível uma correlação entre comportamentos atípicos e algum tipo de deficiência intelectual.
Após quase trinta anos de dedicação, a atuação do Ministério Público do Paraná em defesa das crianças e dos adolescentes causa impactos importantes nessa parcela da população, que pode ser percebido na gratidão daqueles que foram protegidos pelo Estado e tiveram o rumo de suas vidas alterado. Em sinal de agradecimento, muitas crianças enviam lembranças ou fotografias àqueles que as auxiliaram a enfrentar as dificuldades da vida.
Desenho recebido pela promotora de Justiça
Carolina Dias Aidar de Oliveira, da comarca de Matinhos/PR.
[Fonte: Memorial MPPR - Artigos & Memórias - 18/11/2020]
Referências Bibliográficas:
ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.
BRASIL, Sanção presidencial do Estatuto da Criança e do Adolescente. Disponível em: <https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=1&pagina=1&data=16/07/1990>. Acesso em: 7 out. 2020.
CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de Lei 5.172/90. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=226513>. Acesso em: 7 out. 2020.
_____. Dossiê digitalizado sobre o PL 5.172/1990. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1147651&filename=Dossie+-PL+5172/1990>. Acesso em: 7 out. 2020. pp. 349-350
Diário do Congresso Nacional: Câmara dos Deputados. Aprovação e despacho do ECA ao Senado Federal. 29 de junho de 1990. Disponível em: <http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD29JUN1990.pdf#page=100>. Acesso em: 7 out. 2020.
Diário do Congresso Nacional: Câmara dos Deputados. Distribuição na Comissão Especial da Criança-Adolescente. p. 6278. 2 de junho de 1990. Disponível em: <http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD02JUN1990.pdf#page=44>. Acesso em: 7 out. 2020.
GONDRA, José Gonçalves; SCHUELER, Alessandra. Educação, poder e sociedade no Império Brasileiro. São Paulo: Cortez, 2008.
MACHADO, Lareane Lourenço. Um retrato do trabalho infantil no livro didático de história do Brasil contemporâneo. 54 f. Trabalho de conclusão de curso - Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2017.
PARANÁ. Relatório ao Ilustrissimo e Excelentissimo senhor Presidente da Provincia do Parana, Dr. Francisco Liberato de Matos, apresenta o Dr. Joaquim Ignacio Silveira da Mota, Inspector Geral da Instrucção Publica da mesma Provincia. 50p. Disponível em: <http://www.arquivopublico.pr.gov.br/arquivos/File/RelatoriosSecretarios/Ano_1859_MFN_624.pdf>. Acesso em: 22 jun. 2020.
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_____. Quem foi quem na aprovação do ECA: Conheça os parlamentares que tiveram atuações importantes. Disponível em: <https://prioridadeabsoluta.org.br/estatuto-crianca-adolescente/quem-foi-quem-na-aprovacao-do-eca/>. Acesso em: 8 out. 2020.
Resende et al. Os 30 anos da primeira eleição para procurador-geral de justiça e a conquista da autonomia administrativa e financeira do MPPR. Revista Jurídica do MP-PR. Curitiba: ESMP, n.12, 2020. pp.277-300. Disponível em: <https://apps.mppr.mp.br/openjournal/index.php/revistamppr/article/view/146/76>. Acesso em: 25 jun. 2020.
SENADO FEDERAL. Crianças iam para a cadeia no Brasil até a década de 1920. Ricardo Westin. 07 jul. 2015. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2015/07/07/criancas-iam-para-a-cadeia-no-brasil-ate-a-decada-de-1920>. Acesso em: 26 jun. 2020.
______. Projeto de Lei do Senado 193/89. Disponível em: <https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/29333>. Acesso em: 7 out. 2020.
Notas do texto:
Título inspirado na Declaração dos Direitos das Crianças de 1959.
Gondra e Schueler mencionam que uma das questões para o Império foi a existência do Estado Brasileiro sem uma nação, ou seja, um povo brasileiro. A criação do IHGB, Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, reforça a necessidade das autoridades da construção de uma história oficial e a formação de tradições, uma tentativa de reforçar o sentimento de nação entre os cidadãos brasileiros.
A criação do MPPR, em 15 de junho de 1891, destaca os membros para representar e defender os interesses dos orphãos e interdictos, além de outras funções (art. 40, decreto n.1/1891).
Apesar de excepcional, as medidas socioeducativas de privação de liberdade estão na Constituição de 1988. O artigo 227, § 3º, inciso V, cita: “obediência aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, quando da aplicação de qualquer medida privativa da liberdade”.
“Art. 25, II: A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção social.” (Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948).
“Princípio 2º: A criança gozará proteção social e ser-lhe-ão proporcionadas oportunidades e facilidades, por lei e por outros meios, a fim de lhe facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, de forma sadia ou normal e em condições de liberdade e dignidade. Na instituição das leis visando este objetivo levar-se-ão em conta, sobretudo, os melhores interesses da criança.” (Declaração dos Direitos da Criança, 1959).
Durante os debates para o ECA, os legisladores propositores por diversas vezes mencionaram que o ECA foi fruto de diversos juristas, membros do Ministério Público, magistrados, sociólogos, pedagogos, assistentes sociais, diretores de instituições assistenciais, setores da igreja e, inclusive, adolescentes, que participaram dos debates.
Nelson Aguiar foi presidente da FUNABEM/RJ, a Fundação do Bem-Estar do Menor, entre 1985 e 1986.
Programa de história oral do Ministério Público do Paraná.
Trecho baseado na entrevista de Carlos Aldir Loss ao REConto, do MPPR. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=l7moAVusNyA>. Acesso em 5 out. 2020.
Idem.
Trecho baseado na entrevista de Olympio de Sá Sotto Maior Neto ao programa REConto, disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=MIzU2QRZi50>. Acesso em: 12 out. 2020.
Trecho baseado na entrevista de Valéria Teixeira de Meiroz Grilo, procuradora de justiça aposentada, ao REConto, disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Yc4ZufcLweg>. Acesso em: 9 jul. 2020.
Sobre o autor:
Rodrigo Bonatto Dall'Asta.
É graduado em História - Bacharelado e Licenciatura pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Atualmente, é mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná (PPGHIS-UFPR) na linha de pesquisa Intersubjetividade e Pluralidade: Reflexão e Sentimento na História. Pesquisa a área de História a partir da Literatura enquanto fonte, tendo por interesse os textos de Caio Fernando Abreu, a área da Sexualidade e a História das Doenças; também integra o quadro do Memorial do Ministério Público do Paraná como estagiário de pós-graduação em História.
Sobre as imagens:
Recorte de jornal “Um menor condemnado por ladrão”:
Imagem extraída da matéria especial, comemorativa ao aniversário do ECA, da Agência Senado: “Crianças iam para a cadeia no Brasil até a década de 1920”, escrita por Ricardo Westin em 07/07/2015.
Telegrama das crianças e adolescentes de Mato Grosso:
Imagem extraída do artigo “O caminho para a lei”, do especial 30 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente - do Prioridade Absoluta, do Instituto Alana, programa criado com a missão de dar efetividade e visibilidade ao Artigo 227 da Constituição Federal do Brasil.
Desenho de menina após a adoção:
Desenho recebido pela promotora de Justiça Carolina Dias Aidar de Oliveira, da comarca de Matinhos/PR.
(Publicação original)
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» Trilha de Aprendizagem - 30 Anos do ECA
Download: (arquivos PDF)
» ECA Anotado & Interpretado (Atualizado, 2020)
Referências: (links externos)
» Memorial do Ministério Público do Estado do Paraná
» Memorial do Ministério Público do Estado do Paraná: Artigos & Memórias