Acolhimento Institucional X Processo Contencioso

1 - Nem todo acolhimento institucional deve ser acompanhado ou precedido de um procedimento contencioso, pois isto somente ocorrerá, a teor do disposto no art. 101, §2º, do ECA, quando for necessário o afastamento da criança ou adolescente de sua família.

Quando a criança ou adolescente já estiver afastado do convívio familiar (o que pode ocorrer quer em situações "voluntárias" - como no caso de crianças e adolescentes que vivem nas ruas - ou "acidentais" - como no caso de crianças perdidas), ou quando este afastamento ocorrer por situações excepcionais e temporárias, sem que haja oposição dos pais (como nos casos de pais que são internados para tratamento médico, ou presos em razão do cometimento de infração penal, e não há, ao menos num primeiro momento, familiares em condições de acolher os filhos), não haverá necessidade de instauração de procedimento de natureza contenciosa, embora deva ser instaurado procedimento destinado a avaliar as condições do acolhimento e reavaliar periodicamente a possibilidade de reintegração familiar (nos moldes do previsto no art. 19, §1º, do ECA). O art. 101, §2º, do ECA deve ser analisado em conjunto com os arts. 93, par. único e 153, par. único, do mesmo Diploma Legal, que em momento algum fazem referência à necessidade de instauração de procedimento contencioso em "todos" os casos de acolhimento institucional. Muito pelo contrário. O art. 93, par. único, do ECA deixa claro que a providência primeira a ser tentada, logo após o acolhimento institucional, é a reintegração familiar, que não ocorrerá, necessariamente, de imediato (no caso de crianças perdidas, por exemplo, é necessário primeiramente identificar e localizar a família, e no caso de crianças que fogem de casa a reintegração deve ser precedida de uma investigação sobre os motivos da fuga), podendo mesmo ocorrer de forma "progressiva", nos moldes do previsto no art. 92, inciso VIII, do ECA. Desnecessário dizer que nestes e em outros casos, não haveria sentido em instaurar um "procedimento contencioso" visando formalizar o afastamento do convívio familiar quando o objetivo da intervenção estatal é justamente a reintegração familiar da forma mais célere possível. O mesmo art. 93, par. único, do ECA faz ainda referência expressa ao art. 101, §2º, do mesmo Diploma Legal, deixando claro que a instauração de procedimento contencioso somente teria lugar caso fosse necessário promover o afastamento da criança ou adolescente do convívio familiar, contra a vontade dos pais ou responsável [nota 1]. O art. 153, par. único, do ECA é ainda mais explícito, vedando expressamente a utilização dos "procedimentos verificatórios" e similares, previstos no caput do dispositivo apenas "para fins de afastamento da criança ou do adolescente de sua família de origem ou em outros procedimento necessariamente contenciosos". O contido neste parágrafo traz implícita a noção de que o afastamento da criança ou adolescente de sua família de origem, como medida preparatória ou incidental ao acolhimento institucional, quando tiver de ser decretado, deverá sempre ocorrer em sede de procedimento contencioso, pois o direito que está em jogo - o direito à convivência familiar - tem como titular a criança ou adolescente (cf. art. 100, par. único, inciso I, do ECA), sendo de natureza indisponível. Importante notar, no entanto, que o dispositivo em momento algum afirma que "todo" acolhimento institucional será precedido ou acompanhado de procedimento contencioso, mas apenas aqueles nos quais é necessário o afastamento do convívio familiar. Em outras palavras, não é o acolhimento institucional em si que torna obrigatória a instauração de procedimento contencioso, mas sim, em determinados casos, a necessidade do afastamento do convívio familiar como medida antecedente. É preciso ter em mente que o contido nos arts. 101, §2º e 153, par. único, do ECA têm por objetivo evitar que o afastamento da criança ou adolescente do convívio familiar seja "banalizado" e/ou determinado por simples decisão administrativa do Conselho Tutelar (razão pela qual o art. 136, par. único, do ECA procura também coibir semelhante iniciativa do órgão), ou ainda decretado em procedimento no qual não seja assegurado aos pais ou responsável o regular exercício do contraditório, ampla defesa e devido processo legal. Por fim, é preciso ter em mente que, em qualquer caso, o afastamento da criança ou adolescente do convívio familiar deve ser sempre acompanhado de uma adequada orientação aos pais ou responsável, que devem ser chamados a participar da definição da medida a ser ao final tomada (cf. art. 100, par. único, incisos XI e XII, do ECA), e que a reintegração familiar, a exemplo do que deve ocorrer quando da colocação em família substituta (cf. art. 28, §5º, do ECA) deve ser precedida de uma preparação gradativa e de contemplar a previsão de acompanhamento posterior por parte dos órgãos de defesa dos direitos da criança e do adolescente, tendo sempre em mente que o compromisso de todos os órgãos, autoridades e entidades que intervém no processo não é com a "aplicação de medida" e/ou com o "encaminhamento para o programa", mas sim com o resultado, que não é outro senão a plena e regular efetivação do direito à convivência familiar.

2 - A Lei nº 12.010/2009 não revogou o disposto no art. 153, caput, do ECA e nem impediu sua utilização em outras situações que podem ser solucionadas independentemente da instauração de um procedimento contencioso.

Como acima mencionado, quando antes do acolhimento não for necessária a instauração de procedimento contencioso visando o afastamento do convívio familiar (como, por exemplo, no caso de crianças e adolescentes perdidos, que fogem de casa, cujos pais são temporariamente hospitalizados ou mesmo falecem sem que haja familiares em condições de acolhê-las), é possível a instauração de um procedimento de natureza "voluntária" (embora o ideal fosse mudar a terminologia empregada, na medida em que o termo "procedimento verificatório" guarda uma forte carga "menorista"), inclusive para que seja possível acompanhar as atividades desenvolvidas no sentido da reintegração familiar (cf. art. 101, §§4º a 7º, do ECA) e promover a reavaliação periódica a que alude o art. 19, §1º, do ECA. Importante não perder de vista, no entanto, que muito embora a criação do Conselho Tutelar não retire da Justiça da Infância e da Juventude a competência para aplicação de medidas de proteção (ex vi do disposto no art. 5º, inciso XXXV, da CF), esta atividade, a rigor, deve ser desempenhada pelo Conselho Tutelar, que em matéria de garantia do direito à convivência familiar para as crianças e adolescentes acolhidos em instituições, deve trabalhar de forma articulada não apenas com o Poder Judiciário, mas também com os órgãos e entidades co-responsáveis pelo atendimento de crianças, adolescentes e suas respectivas famílias (cf. arts. 86 e 88, inciso VI, do ECA). Em qualquer caso, portanto, os referidos procedimentos de natureza "voluntária" a cargo da Justiça da Infância e da Juventude devem ser reduzidos ao mínimo, devendo-se em contrapartida fortalecer o Conselho Tutelar como órgão de defesa dos direitos infanto-juvenis por excelência.

3 - Em situações excepcionais, em que não seja possível localizar a autoridade judiciária para a expedição da Guia de Acolhimento a que alude o art. 101, §3º, do ECA, é admissível o acolhimento institucional sem a prévia expedição do documento, que deverá ocorrer a posteriori, com a comunicação do acolhimento à autoridade judiciária, nos moldes do disposto no art. 93, caput, do ECA.

Vale observar que o próprio art. 93, caput, do ECA, prevê a possibilidade do "acolhimento espontâneo" por parte da entidade (no caso de crianças e adolescentes perdidos que batem à sua porta ou são até ela levados por populares ou pelo Conselho Tutelar, com a posterior comunicação do acolhimento à autoridade judiciária no prazo de 24 horas. O objetivo da lei não é impedir o acolhimento sem a Guia (o que poderia resultar em prejuízo à criança ou adolescente atendida, que ficaria sem amparo até a expedição do documento), mas sim assegurar um rigoroso controle judicial sobre o ato, com a uniformização e sistematização de alguns dados que serão úteis nas etapas posteriores do atendimento do caso (incisos I a IV do citado art. 101, §3º, do ECA). Assim sendo, sempre que não for possível a prévia expedição da Guia de Acolhimento, mas a medida se mostrar necessária, pelas mais diversas razões, o acolhimento poder ser realizado mesmo sem o documento, que será obtido num momento posterior, após a comunicação do acolhimento à autoridade judiciária. É possível mesmo cogitar de situações em que a Guia de Acolhimento sequer terá de ser expedida, como o caso de uma criança perdida encaminhada à instituição cujos pais são localizados antes de vencidas as 24 (vinte e quatro) horas a que alude o art. 93, caput, do ECA, ou de crianças e adolescentes que se encontram "em trânsito" entre municípios distantes, que necessitam apenas "pernoitar" numa determinada entidade de acolhimento em meio à viagem de recâmbio ao local de origem ou onde serão acolhidas em definitivo. Em ambos os casos citados, sequer seria razoável falar que, tecnicamente (para fins de incidência do comando normativo emanado do art. 93, do ECA), houve o "acolhimento institucional" da criança ou adolescente, mas apenas sua "passagem" pela entidade, que em tal caso não necessitará da Guia para efetuar o acolhimento e, a rigor, sequer necessitará efetuar sua comunicação à autoridade judiciária (desde que a permanência na entidade não exceda as 24 horas anteriormente referidas) [nota 2], sem prejuízo da anotação da ocorrência em registro próprio, para posterior controle (art. 95, do ECA). Vale destacar que, mesmo com a comunicação do acolhimento à autoridade judiciária, a reintegração familiar será a providência primeira a ser tentada (cf. art. 93, par. único, do ECA), e se o êxito da medida for obtido antes de vencido o prazo de 24 (vinte e quatro) horas a que alude o art. 93, caput, do ECA, a expedição da Guia respectiva perde por completo seu objetivo.

 

Curitiba, 18 de junho e 2010

 

Notas do texto:

1 Nunca é demais lembrar que o art. 101, §2º, do ECA, quando da prática de abuso ou violência intrafamiliar, também contempla, como alternativa ao afastamento da criança ou adolescente do convívio familiar o afastamento do agressor da moradia comum (que terá sempre preferência àquela medida extrema).

2 O que logicamente não dispensa a entidade, se necessário com o apoio do Conselho Tutelar e outros órgãos (no espírito do preconizado pelo art. 88, inciso VI, do ECA), obter informações acerca da origem da criança ou adolescente e seu destino, bem como de efetuar a comunicação posterior do acolhimento e desacolhimento, se assim entender necessário a autoridade judiciária ou vier a ser definido quando da elaboração dos "protocolos" inerentes à política de atendimento local.

 

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Referências: (links externos)
»  ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei nº 8.069/1990
»  Nova Lei Nacional de Adoção - Lei nº 12.010/2009