Saúde Pública
“Tenho para mim que o SUS, sem dúvida, foi o maior avanço trazido pela Constituição de 1988. O SUS é um projeto de nação, não é um projeto de governo ou um projeto político.”
A universalização do atendimento à saúde a todos os brasileiros foi a principal transformação na área proporcionada pela Constituição Federal, na opinião do procurador de Justiça Marco Antonio Teixeira, coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção à Saúde Pública, que tem perto de 20 anos de atuação específica na área da saúde pelo Ministério Público do Paraná. Nesta entrevista, entre outros pontos, ele fala da importância da criação do Sistema Único de Saúde, aponta os desafios atuais para manutenção do SUS, cita os maléficos efeitos da emenda 95/2017, que tabelou os gastos públicos para os próximos 20 anos, e ressalta a necessidade da participação da comunidade no processo saúde-doença e da união da categoria ministerial em defesa dos fundamentos do modelo assistencial em saúde.
Marco Antônio Teixeira
Procurador de Justiça, ex-procurador-geral de Justiça do MPPR, é coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção à Saúde Pública. Atua na área da saúde pública há mais de 20 anos.
Quais os principais avanços trazidos pela CF de 1988 para a área da saúde?
A Constituição de 1988 trouxe a inclusão integral da população para o sistema público de saúde. Antes, apenas pessoas com carteira assinada, ou seja, trabalhadores formais, recebiam suporte de saúde pelo Estado – todos os demais estavam excluídos, relegados à filantropia. As pessoas sem condições financeiras eram atendidas majoritariamente nas Santas Casa ou hospitais beneficentes. Mesmo para aqueles atendidos na rede pública, o tratamento de saúde era oferecido no limite do possível à época, sem a previsão atual de suporte integral. A Constituição (e as leis orgânicas que a regulamentam), mudou radicalmente tudo isso, com o Sistema Único de Saúde, a partir de três eixos fundamentais: a universalidade, a igualdade e a integralidade (se poderia acrescer a resolutividade). Todos passaram a ter direito de tratamento de saúde de forma igualitária, independente de condição social, educacional, racial ou qual seja, em todos os níveis de complexidade da rede pública de saúde. Vem, também, a previsão da participação da comunidade como diretriz das ações de saúde, o que se dá hoje por meio, principalmente (mas não apenas), dos conselhos e conferências de saúde. Tenho para mim que o SUS, sem dúvida, foi o maior avanço trazido pela Constituição de 1998. Nas palavras de Sérgio Arouca, constitui o cume de um “processo civilizatório”.
O que mudou na atuação do Ministério Público na área da saúde a partir da Constituição de 1988?
A atuação do Ministério Público do Paraná na área da saúde começou a ser estruturada a partir do início da década de 1990. São pelo menos 25 anos de caminhada. É importante destacar que a nossa instituição foi pioneira no país em garantir autonomia de atuação na área da saúde, que antes ficava diluída em uma cesta de direitos de cidadania gerais. Um dado marcante da história da evolução do direito sanitário, entre nós, no plano nacional, vem em 1998, com a Carta de Palmas, apresentada em encontro do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais de Justiça. A partir dali, a saúde passou a ser trabalhada gradativamente de forma especializada nos Ministérios Públicos em todo país, como já era praticado no MPPR. Temos, nesses anos todos, como instituição, um percurso de avanços e alguns reveses. Tudo somado, a instituição tem se aperfeiçoado continuamente e prestado bons serviços à sociedade. Tem velado, com esmero, pelo respeito ao direito à saúde das pessoas e da coletividade nos aspectos da assistência e da gestão sanitária.
O que o senhor destacaria na atuação do Ministério Público do Paraná?
O trabalho no Paraná, desenvolvido pelas Promotorias de Justiça em todo o Estado e pelo Centro de Apoio, está voltado para atender não apenas as necessidades de saúde que chegam da população e dos indivíduos, mas também está direcionado a uma atuação proativa. O Centro de Apoio, ao longo dos anos, estabeleceu vários programas com a lógica de serem úteis ao aperfeiçoamento do Sistema e aos serviços que por ele são prestados a seus usuários. Isso se expressa, atualmente, por exemplo, através Projeto Suscom+, dirigido a melhorar o atendimento do SUS na atenção básica por meio da participação da comunidade num processo de discussão democrática. Destacamos ainda um trabalho importante na área de saúde mental, o Sistema Protege, um banco de dados pacientes internados involuntariamente nas unidades de cuidados psiquiátricos do Paraná, que se transformou em referência nacional. Também estamos há um ano e meio, em conjunto com os colegas, agindo de modo a garantir a implementação de Ouvidorias do SUS em todos os 399 municípios paranaenses. Atualmente faltam apenas 38 a terem o órgão instalado – começamos esse projeto com um déficit de 150. Foi decisiva a intervenção ministerial na criação de uma linha de cuidado para populações expostas aos efeitos dos agrotóxicos. Mencione-se, ainda, o Pró Conselho, voltado a discussões regionais envolvendo promotores, gestores e conselheiros de saúde, atualmente desenvolvido em municípios do litoral e da região sul do Paraná. Afora isso, o Ministério Público desenvolveu uma política que nasce na década de 90 e se mantém estável até o presente, identificando ações prioritárias, que é investirmos nossos esforços na melhoria da atenção básica, no aperfeiçoamento e apoio ao controle social (por meio dos conselhos comunitários e de saúde), e na qualificação de acesso e atenção na âmbito da saúde mental. Essas são as políticas centrais do Ministério Público na saúde, dentre outras em execução.
A partir da sua experiência, quais seriam os grandes desafios a serem enfrentados hoje para o cumprimento dos comandos constitucionais indicados em 1988 na área da saúde?
Não obstante muito o SUS tenha crescido ao longo desses últimos 30 anos, é sabido que nem todas as promessas feitas pela Constituição Federal se efetivaram satisfatoriamente para todos. Isso se dá, por exemplo, no caso de populações fragilizadas, ou grupos que costumam ser atingidos por “doenças negligenciadas”, termo reconhecido inclusive pela Organização Mundial da Saúde e que trata de enfermidades endêmicas comuns nas populações de baixa renda e sem alcance a serviços básicos, como saneamento ou água potável. Então nós temos, também, vazios sanitários, que são grandes extensões sem atendimento de saúde, ou que o tem em situação precaríssima. Aqui no Paraná, a região do Vale do Ribeira é um exemplo disso. Portanto, essa faixa da população deve ser objeto prioritário de atenção de todos os governos: municipais, estaduais e do federal. E da sociedade. Temos que lembrar que o SUS é composto pela comunidade e sua gestão não pode prescindir da participação popular, por meio dos conselhos de saúde, entre outros meios. A vocação institucional do MP o insere definitivamente neste contexto de persistir na construção e na defesa de um projeto de nação, representado pela saúde de seus cidadãos. Não se cuida, apenas, de uma ação de governo ou uma proposta política. Hoje, algo em torno de 8% do nosso PIB vem para a área da saúde. Isso não é pouco. Mas quando você transforma esse valor em assistência, em serviços, vê que ainda é insuficiente, que há muito por fazer. Destaco, por ser muito ilustrativo, o artigo terceiro da Lei Orgânica da Saúde (8080), que diz que as condições de saúde que o país apresenta são os elementos que o identificam enquanto estado nacional. A saúde que nós produzimos para nossos cidadãos é um pouco como se fosse nosso RG enquanto estado nacional.
A despeito das propostas que não se efetivaram na saúde, como garantir que as conquistas da CF, como o próprio SUS, sejam mantidas?
Não acredito que possa haver uma mudança radical na Constituição, na parte da saúde. Se ocorresse, talvez implicasse em uma verdadeira comoção nacional. Hoje, 75% da população brasileira, que são perto de 150 milhões de habitantes, dependem 100% do SUS. Essas pessoas não podem e não têm como abrir mão dessa grande conquista da sociedade, por mais problemas que tenha o Sistema. É necessário resistir a propostas que venham a apequenar o SUS ou até desconstituí-lo. Mesmo esses 25% da população que tem atendimento no terreno da saúde suplementar (operadoras privadas), fazem eles uso do SUS, em serviços da vigilância sanitária, transplantes (que dificilmente os planos cobrem), vacinas, pronto socorro, etc. E são bem atendidos, em geral. É importante frisar que os serviços, quando funcionam para todos, tendem a ser melhores do que quando focados apenas em grupos mais pobres ou de outra forma fragilizados socialmente. Isso é um valor adquirido pela sociedade brasileira e não se mexe nisso com facilidade. Não se deve diminuir esse ganho coletivo. Ele é inestimável.
Qual a expectativa em relação ao futuro da gestão pública em saúde?
Hoje nós temos o teto de gastos, indicado na Emenda Constitucional 95, que limita as despesas do governo em áreas essenciais (principalmente sociais) para os próximos 20 anos. Isso não é uma realidade que se possa lidar com facilidade: serão mais de 2 milhões de brasileiros nascendo por ano. Com a inflação dos custos da saúde, na média do dobro do mercado, se jogar nessa conta o envelhecimento da população (cada vez vivemos mais e dependemos de serviços de saúde), a medicalização societal alcança custos incompatíveis com o freio estabelecido. Ou seja, é uma conta impossível de fechar. A área da saúde terá de buscar recursos adicionais, que lhe fazem falta para tratar do cidadão, disputando com outras áreas também importantes. Então, se não houver uma mudança no quadro dessa emenda, podemos esperar por uma luta fratricida entre áreas do governo, algumas delas como a educação e a saúde, disputando entre quinhões de um orçamento limitado. E todas perdendo. Isso é absurdo, não tem nenhum sentido, é um movimento de lesa-sociedade. Pensando de uma forma geral, o SUS, desde que surgiu em 1988, que sempre enfrentou dificuldades, que sempre teve antagonistas poderosos, que foi predado, em várias ocasiões, por poderosos interesses econômicos, que não têm nada a ver com o real interesses público, ainda enfrenta fortes incompreensões. Não conseguimos desenvolver um sentimento de pertencimento mais profundo entre os usuários e o SUS. Precisamos acreditar nele, precisamos melhorá-lo, precisamos, ao cabo, gostar um pouco mais dele. Não obstante tudo, porém, o SUS é uma das melhores hipóteses de esperança e de trabalho que possuímos.
Dentro desse contexto, para encerrar, o que o senhor diria aos agentes do Ministério Público do Paraná que atuam na saúde?
O SUS passa por sérios riscos no seu modelo fundamental. Uma conjunção de fatores adversos. Escolhas políticas, pressões corporativas, judicialização crescente, etc. Nosso papel enquanto promotores de Justiça é perceber a importância que temos neste momento histórico. Temos que cuidar do Sistema para que ele possa bem exercer os cuidados em relação a saúde e à vida de todos nós. Destaco, porém, que cuidar do SUS não é assumir, o MP, o papel de gestor. É operar com parâmetros bem objetivos, especificamente nos municípios e em relação ao Estado. Nessas duas instâncias, que nos cabem, há que identificar bons parâmetros de planejamento, fiscalizá-los, acompanhar sua execução e financiamento e, num terceiro passo, obtermos uma boa avaliação dos serviços prestados, inclusive um retorno dos usuários. Então, na raiz, é isso: planejamento, execução/financiamento e avaliação. Em palavras mais simples, o usuário satisfeito, dentro das possibilidades existentes São processos complexos. O Centro de Apoio tem buscado desenvolver, por meio da geração de conhecimento, da divulgação de técnicas operacionais jurídico-sanitárias, discussões interiorizadas com os colegas, amplo e renovado estoque de dados na sua página eletrônica, subsídios que mirem sempre o nosso aperfeiçoamento institucional. Agora, mais que isso, é crer que podemos cada vez fazer melhor, mais que isso, é confiar que a atuação nessa área tornará melhor o local em que vivemos. Mais que isso – é não desistir do SUS.