Patrimônio Público
“É importante que as gerações mais novas do Ministério Público brasileiro voltem os seus olhos para o passado e percebam que a luta dos antigos promotores de Justiça, consubstanciada na Carta de Curitiba, de 1986, ainda não acabou.”
A defesa do patrimônio público teve grandes avanços nos últimos anos não apenas como resultado da Constituição de 88, mas também em decorrência da instituição de outros instrumentos legais importantes, como a Lei da Improbidade Administrativa. “Todos estes fatos estão interligados. Nada aconteceu de graça”, comenta o procurador de Justiça Bruno Sérgio Galati, que coordena o Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Defesa do Patrimônio Público, ao falar sobre o impacto na área da chamada Constituição Cidadão.
Nesta entrevista, o procurador, que ingressou no Ministério Público do Paraná em 1985, atuando desde então majoritariamente com questões ligadas à defesa do patrimônio público, faz um retrospecto de como se dava a atuação dos agentes ministeriais antes da Constituição, aponta os avanços trazidos a partir de 1988 para o combate à corrupção e os expedientes que se seguiram e contribuíram nesse processo e comenta também as tentativas externas de enfraquecimento da atuação do MP.
Bruno Sérgio Galati
Membro do Ministério Público do Paraná desde 1985, é procurador de Justiça, coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Defesa do Patrimônio Público. Foi subprocurador-geral de Justiça para Assuntos de Planejamento Institucional.
Quais os principais avanços trazidos pela CF de 1988 para do Patrimônio Público, incluindo a atuação do Ministério Público?
Pude vivenciar, como agente ministerial, o rápido processo de transformação, o que aconteceu antes, durante e depois. Não se pode olvidar o que foi feito antes de 88, no que diz respeito à defesa do patrimônio público, sem considerar a realidade da época. Como diria José Ortega y Gasset, “o homem é o homem e a sua circunstância”. O mundo é dinâmico, as coisas estão em permanente processo de mudança. À época, além da falta de independência administrativa e financeira (estávamos vinculados ao Executivo), a estrutura funcional do MP objetivava atender às demandas judiciais, com foco na área criminal. Basicamente, utilizávamos o capítulo I, do Código Penal (Dos crimes praticados por funcionário público contra a administração em geral), com destaque para o peculato, e o Decreto-Lei 201/67, para responsabilizar prefeitos e vereadores. A investigação estava sob responsabilidade exclusiva da autoridade policial. Em 1985, com a edição da Lei da Ação Civil Pública, descortina-se para o Ministério Público brasileiro um novo mundo. Neste momento, começamos a engatinhar na busca autônoma por elementos probatórios com o poder de presidir o inquérito civil. Desde então, a atenção para o mundo extrajudicial começou a rivalizar com o judicial, pressionando a criação de estruturas especializadas na defesa dos direitos difusos e coletivos (Promotorias do Meio Ambiente e Consumidor, inicialmente).
A defesa do patrimônio público, latu sensu, também começou a ser objeto de questionamentos, considerando que era possível fazer uma ilação entre a falta ou deficiência do serviço público com a corrupção ou má gestão dos recursos públicos. Este cenário preparou os membros do Ministério Público para as discussões legislativas, culminando com a divulgação da Carta de Curitiba, em junho de 1986 (documento que refletiu a posição do Ministério Público nacional sobre os instrumentos de trabalho, direitos, deveres e garantias para a instituição), com vistas à Assembleia Nacional Constituinte. Qual era o elemento novo na reforma constitucional? O Ministério Público! Aventura dos legisladores constituintes? Simples aposta em uma inovação constitucional inusitada no mundo jurídico? Não! A sociedade já conhecia os membros do Ministério Público; sabia do seu trabalho, da sua dedicação, do denodo de cada membro em torna da defesa do interesse público, mesmo percebendo vencimentos inferiores aos da Magistratura. Portanto, esta ponte entre o passado e o presente não pode jamais ser esquecida, porque as grandes vitórias do momento não teriam acontecido sem o árduo trabalho dos colegas que nos antecederam, os quais construíram o cenário, a base sólida sobre a qual o Ministério Público pós 88 está alicerçado.
Não se pode falar que o Ministério Público mudou depois de 88. De fato, o espírito de indignação diante das injustiças e de combate à corrupção de alto nível foi alimentado pelo instrumental colocado à disposição da instituição, com a edição, por exemplo, da Lei de Improbidade Administrativa, em 1992. Em 2013, a sociedade civil saiu às ruas e fez o Congresso Nacional rejeitar a PEC 37, enquanto o Supremo Tribunal Federal, após dez anos de discussão, garantiu em 2015 a prerrogativa de investigação criminal própria pelo Ministério Público. Todos estes fatos estão interligados. Nada aconteceu de graça! Enfim, a consolidação do modelo atual tem tudo a ver com a proposta de que somos defensores da sociedade, e o mais importante, defensores intransigentes do regime democrático (conforme a Carta de Curitiba, de 1986) o que não pode ser confundido com modelo político-ideológico de natureza partidária.
O senhor citou a Lei Federal 8.429, de 1992, que ficou popular como a “Lei de Improbidade”. Pode falar da relação desse expediente com a Constituição e com a atuação no patrimônio público?
A Lei de Improbidade regulamentou o artigo 37, § 4º, da Constituição Federal e se constituiu no instrumento principal de combate à corrupção. Criou-se um novo paradigma com a exemplificação de condutas ou tipos abertos passíveis de imposição por ato de improbidade, inclusive por violação de princípios constitucionais, o que significou grande avanço na defesa ontológica da constituição. O conceito de moralidade administrativa passou a ser objeto de discussão. Isso foi realmente um marco muito importante para o aperfeiçoamento da gestão da coisa pública.
Como passou a ser a atuação dos promotores de Justiça?
Nos primeiros cinco anos de vigência da Lei da Improbidade, podemos dizer que estávamos aprendendo a usar o ferramental e a testar as respostas que o Judiciário daria, inclusive no que diz respeito à perda do cargo de mandatos públicos. A partir de 1998, mais ou menos, foram criadas algumas promotorias especializadas nesta área e o trabalho passou a fluir de forma natural com respostas positivas do Judiciário. O uso da ação de improbidade passou a ser a primeira opção em razão da rapidez e eficiência da investigação pelo próprio promotor de Justiça. Na medida em que avançamos na luta contra a corrupção e os desmandos administrativos, começaram os ataques para retaliar a atuação do Ministério Público, criando mecanismos de intimidação, como imposição de responsabilização pessoal pelo insucesso da ação, ou obstáculos à tramitação da ação civil de improbidade. Nesse período, tivemos diversas proposições do Legislativo e do Executivo para barrar os avanços trazidos pela Lei de Improbidade. Podemos citar uma que se consolidou, que foi a criação de uma fase preliminar de notificação dos réus para prévia manifestação antes do recebimento da inicial de uma ação de improbidade. Outra situação que gerou muita dúvida foi a insegurança jurídica criada pela polêmica em torno da prescritibilidade ou imprescritibilidade do dano ao patrimônio público, somente resolvida pelo Supremo Tribunal Federal recentemente, por maioria de votos.
Cumpre destacar que a manifestação da sociedade, mais uma vez, se fez presente, através, por exemplo, da intervenção do Grupo Nacional de Coordenadores de Centros de Apoio Operacional do Patrimônio Público e Probidade Administrativa dos Ministérios Públicos Estaduais, os quais levaram ao conhecimento dos ministros do STF os efeitos concretos que a decisão provocaria. Enfim, a guerra em torno da defesa da probidade e do interesse público não terminou, porque a segurança jurídica, infelizmente, não é um princípio que os Tribunais Pátrios costumam privilegiar.
Em que ainda é preciso avançar para a garantia de direitos na seara do Patrimônio Público, passados 30 anos de promulgação da CF? Quais seriam os grandes desafios?
Superada a fase da precariedade do instrumental processual ou técnico, no que diz respeito a pessoal e material de apoio, espera-se que a instituição passe a trabalhar de forma integrada. Este conceito extrapola a visão individual do agente do Ministério Público para alcançar a perspectiva macro de agente de transformação social que avalia seus atos e as consequências. O amadurecimento da nossa intervenção passa pela consolidação da proposta constitucional de defensor do regime democrático, o que extrapola o mero combate à corrupção.
Nos dias atuais, o Ministério Público deve pautar a sua intervenção, em todas áreas, pelo estudo prévio e meticuloso do cenário onde se desenvolve o drama humano, pois a repetição de métodos de investigação convencionais, combinados com soluções acadêmicas alienígenas, já provo sua ineficiência para enfrentamento do quadro atual de criminalidade. A sociedade espera que o Ministério Público, que não tem condições de resolver sozinho esta situação, possa contribuir, pelo menos, com informações ou dados por ele produzidos, de modo a permitir a intervenção da sociedade neste modelo absolutamente caótico e injusto. Isto significa fazer uso de ferramentas de TI (diga-se inteligência artificial), tratamento das informações consideradas estratégicas e proposta coerente de enfrentamento ao crime organizado, que ameaça sucumbir as forças do Estado (em alguns locais isto já ocorreu!). A insegurança gerada pelo crime está colocando em risco a nossa liberdade. Muitos já admitem perder parte da sua liberdade de ir e vir (que já perdemos, pois não podemos sair de casa sem risco de violência) a título de obter do Estado a proteção da vida e do patrimônio. A democracia está vinculada à liberdade, mas a liberdade também exige ônus: demanda participação política, cuidado e atenção por parte de quem representa a população.
Atualmente, temos um país dividido, com grupos admitindo restrições de liberdade ‘para melhorar, porque como está não pode mais ficar’. Esse é um discurso muito perigoso, que o Ministério Público, sem interferir na área política, pode ajudar a desmitificar, mostrando que é possível trabalhar dentro Estado Democrático de Direito e combater o assustador quadro de criminalidade. Neste momento, é importante que as gerações mais novas do Ministério Público brasileiro voltem os seus olhos para o passado e percebam que a luta dos antigos promotores de Justiça, consubstanciada na Carta de Curitiba, de 1986, ainda não acabou. Temos novos desafios, imensos desafios, porém estes não são maiores que as responsabilidades que recebemos do poder constituinte. Não fugiremos à luta! Vamos superar os novos obstáculos.