Educação
“A educação passa a ser fixada como direito social e recebe um capítulo específico no regramento, volta a ser um dever primário do Estado, garantida a todos, orientada em princípios como a igualdade de acesso, liberdade, pluralismo de ideias, gratuidade e gestão democrática, entre outros.”
Igualdade de acesso, liberdade, pluralismo de ideias, gratuidade e gestão democrática são alguns dos princípios introduzidos ou resgatados para a educação brasileira pela Constituição Federal de 1988, após um período de retrocessos marcantes. “Com a atual constituição, a educação passa a ser fixada como direito social e volta a ser um dever primário do Estado, garantida a todos”, destaca a procuradora de Justiça Hirmínia Dorigan de Matos Diniz, referência nacional em educação, área à qual dedicou 16 dos seus 25 anos de atuação no MPPR. Nesta entrevista, a procuradora, que é doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Paraná, faz um relato do momento histórico em que foi editada a Constituição, ressalta o peso do período da ditadura no processo educacional e o desafio da atuação dos agentes ministeriais para garantir a efetivação do que é previsto no texto constitucional, especialmente no que se refere ao acesso e permanência na escola a todas as crianças e adolescentes, desde os primeiros anos de vida e da importância da educação como ponte para o acesso a outros direitos, a partir da mobilização social.
Hirmínia Dorigan de Matos Diniz
Procuradora de Justiça, referência nacional em educação, área à qual dedicou 16 dos seus 25 anos de atuação no Ministério Público do Paraná. É doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Paraná.
Quais os principais avanços trazidos pela CF de 1988 para a área da educação?
Podemos dizer que a Constituição de 1988 é uma resposta ao período da ditadura. É ainda, de todas as constituições que o país já teve, a mais emblemática no tocante à educação, ao lado da Constituição Federal de 1934. Faço um breve retrospecto do que tínhamos antes: logo após o golpe, é editada a Constituição de 1967, que, apesar de votada pelo Congresso nacional, é carregada dos vícios do momento histórico. Ela já começa tirando a educação da responsabilidade do Estado, indicando que “o ensino é livre à iniciativa particular” e que a educação “será dada no lar e na escola”. Também é abolida a fixação de patamar mínimo para investimento na área. Logo depois, com a Emenda Constitucional nº 1, de 1969, os retrocessos avançam: a gratuidade do ensino como um direito de todos acaba, a liberdade de cátedra dos professores é alterada para “liberdade de comunicação de conhecimentos”, ou seja, os profissionais de educação não têm mais voz, passam a ser limitados a agentes de reprodução de conteúdo e também passam a ser ameaçados com a perda de direitos políticos e do cargo caso se manifestem de forma contrária ao regime. Como em todos os sistemas totalitários, a educação passa a ser uma política pública importante para o governo, enquanto ferramenta para se forjar a ideologia da ditadura – daí a grande interferência do Estado nessa área. A despeito disso, pequenos avanços começam a surgir, conforme o regime começa a perder força: em 1978 vem a Emenda Constitucional nº 12, que pela primeira vez prevê a educação especial às pessoas com deficiência, a ideia de inserção dessa parcela da população no sistema de ensino.
Em 1981 é definida a aposentadoria especial aos professores. Em 1983, também via Emenda Constitucional, passa a ser fixado em 13% o percentual mínimo de investimento em educação pela União da receita dos impostos, e 25% para Estados e Municípios. O regime democrático é retomado no país e surge a Constituição de 1988, que resgata o ideário de textos anteriores em que a educação tinha destaque, como na de 1934 e na de 1946. A educação passa a ser fixada como direito social e recebe um capítulo específico no regramento, volta a ser um dever primário do Estado, garantida a todos, orientada em princípios como a igualdade de acesso, liberdade, pluralismo de ideias, gratuidade e gestão democrática, entre outros. Se coloca a educação não apenas como meio para letramento, mas como espaço de formação do indivíduo e preparo para o exercício da cidadania: situações inconcebíveis no momento anterior vivido pelo país. A comunidade passa a ter papel fundamental no processo de gestão do ensino, inclusive no de fiscalização dos orçamentos para o setor. Também são previstos piso salarial para valorização dos professores, a universalização do ensino médio, o atendimento especializado a pessoas com deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino. A educação infantil ganha atenção, a oferta do ensino noturno, o atendimento ao educando em todas as áreas, como transporte, saúde e alimentação.
Destaco ainda a possibilidade de responsabilização dos agentes públicos que não fizerem os investimentos mínimos na área educacional e a elevação desse percentual base e a previsão constitucional do Plano Nacional de Educação, com as metas de erradicação do analfabetismo, a universalização do ensino em todas as etapas, a formação para o trabalho e a melhoria da qualidade de ensino.
O que mudou na atuação do Ministério Público na área da educação a partir da Constituição de 1988?
Com a Constituição de 1988, o Ministério Público passa a ser uma nova instituição, com novas atribuições e novas obrigações. O MP perde seu caráter meramente repressor e suas estratégias de atuação se voltam para a defesa de políticas públicas, com os agentes ministeriais passando a ter que entender como funciona esse processo, quais os novos instrumentos poderiam adotar para essa nova proposta de atuação. A questão da educação começa a receber maior atenção institucional a partir do processo de estruturação do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990, trabalho que gerou a primeira atuação em massa de integrantes do Ministério Público. A escola então é destacada como a grande política pública, que soma diversas áreas de atenção e que demanda uma forma de atuar específica por parte dos promotores e procuradores de Justiça. No início dos anos 2000 percebo que há o grande movimento nacional da instituição Ministério Público para atuar de forma específica com a educação, sendo o Paraná, nesse sentido, um dos pioneiros, com a criação, em 2002, do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção à Educação, que integrei desde esse início.
O MP encontra um grande campo para atuar a partir da Lei do Fundef, de 1996, que prevê a criação de fundo de recursos específico para a educação fundamental e magistério, com a possibilidade de responsabilização dos agentes e gestores públicos que fazem uso irregular da verba que deveria seguir para a educação, depois estendida à educação básica com a Lei do Fundeb, de 2007. Os agentes ministeriais passam a perceber como a falta de cuidado do Poder Público com a educação, com enfoque coletivo, caminha muitas vezes ao lado de irregularidades no Patrimônio Público e começam a atuar nessas duas frentes, de forma associada. Destaco, também, o avanço da atuação dos agentes do MP em prol das pessoas com deficiência no que diz respeito à educação, perde-se a ideia do “especial” e de segregação, buscando-se a paridade, a inclusão desse público na rede regular de ensino.
Em que ainda é preciso avançar para a garantia de direitos nessa área, passados 30 anos da promulgação da CF? Quais seriam os grandes desafios a serem enfrentados hoje na educação?
Penso que o grande desafio é a mobilização social, de forma ampla, não apenas com foco na educação. A Constituição de 1988 traz com muita força a questão da participação popular e de controle pela sociedade da criação e aplicação de políticas públicas para a efetivação dos direitos listados no texto constitucional. Ocorre, porém, um descompasso: essa Constituição surge justamente para uma geração que foi criada no período da ditadura, que na prática não “aprendeu” esse conceito amplo de democracia, de acesso à gestão pública pela comunidade, de responsabilidade de todos pela coisa pública. Assim, temos ainda que conscientizar a grande maioria da população que a participação nesse processo é fundamental, que todos podem e devem acompanhar audiências públicas, reuniões, portais da transparência. Falando especificamente da educação, quando a pessoa precisa procurar a Promotoria de Justiça porque não encontra vaga em creche para o filho, por exemplo. Isso já é o final da linha. A população precisa estar presente e cobrando desde o início do processo, quando da definição dos orçamentos para a educação. Questionando os gestores: vai ter verba para todas as crianças em creche? Ela tem autonomia para isso, mas muitas vezes não sabe como exercer esse direito. Nesse contexto o Ministério Público deve estar presente, incentivando a gestão popular, o controle social. Também vejo como uma frente importante a ser diligenciada, aí já especificamente na matéria educacional, a sensibilização de parte do Judiciário às demandas da área.
Ainda há uma dificuldade do Poder Judiciário em conhecer as demandas coletivas na área da educação, pois, muitas vezes, o provimento jurisdicional que se pretende obter pressupõe o enfrentamento de questões orçamentárias, de planejamento, de formulação e implementação de políticas públicas, áreas estas complexas, além de novas, representando uma nova concepção de atuação judicial.
Para concluir, destaco que a educação básica, a garantia de investimento nessa fase, de acesso à escola nos primeiros anos de vida (como creches e pré-escola), é comprovadamente sinônimo de avanço em outras áreas, em menos gasto de dinheiro público com saúde, menos criminalidade, menos dependência do Estado na vida adulta. Temos dois prêmios Nobel com trabalhos que sustentam isso (Amartya Sen e James Heckman). Investimento em educação é matemático: é possível se aferir o retorno em outras áreas sociais, como saúde, trabalho e segurança pública. Daí o porque a matéria deveria ser encarada, de fato, como prioritária.