Consumidor
“O mais proeminente avanço foi elevar a defesa do consumidor a direito e garantia fundamental, além de princípio da ordem econômica, ao nível da soberania nacional e da livre iniciativa. Houve importante mudança de enfoque: de um tratamento meramente individual na defesa dos direitos ao efetivo exercício da tutela de direitos coletivos”.
Numa sociedade marcada fortemente pelas relações de consumo, quais as novidades trazidas pela Constituição de 1988? São inúmeras, que, principalmente, possibilitaram o tratamento coletivo das questões relacionadas ao consumo. A defesa do consumidor foi elevada a direito e garantia fundamental. Quem fala sobre o assunto é o procurador de justiça Ciro Expedito Scheraiber, coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Defesa do Consumidor e da Ordem Econômica.
Ciro Expedito Scheraiber
Ingressou no Ministério Público em 1984. É procurador de justiça, coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Defesa do Consumidor e da Ordem Econômica. Integra o corpo docente da Fundação Escola do MPPR como professor de Direito do Consumidor.
Quais os principais avanços trazidos pela CF de 1988 para a área dos direitos do consumidor?
O primeiro e mais proeminente avanço foi elevar a “defesa do consumidor” a direito e garantia fundamental, além de princípio da ordem econômica, ao nível da soberania nacional e da livre iniciativa, dentre outros. A partir daí, houve importante mudança de enfoque: de um tratamento meramente individual na defesa dos direitos, passou-se ao efetivo exercício da tutela de direitos coletivos.
Além disso, houve o empoderamento do Ministério Público, que recebeu novas atribuições com vistas a dar vazão à demanda de direitos coletivizados. Deve-se ressaltar ainda a estruturação, embora insuficiente, de órgãos públicos de controle do mercado e de defesa dos consumidores – como o Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC), vinculado ao Ministério da Justiça, e dos Procons Estaduais, ligados às Secretarias de Estado da Justiça –, a criação de alguns Juizados Especiais voltados à tutela do consumidor, o incremento de políticas públicas para criação de Procons municipais, dentre outros, tudo isso com vistas à necessidade de tutela coletiva de direitos.
Há várias situações que realçam distinções entre os períodos que antecederam à Constituição Federal e posteriores a ela. Por exemplo, embora a ação civil pública tenha sido criada em 1985, foi com a CF-88 que se firmou o inquérito civil, pois antes não se cogitava de outro inquérito visando investigação que não fosse o inquérito policial. O inquérito civil, hoje, é a base e o sustentáculo das investigações do Ministério Público.
Também a Constituição Federal não cogitava, como hoje, a possibilidade de investigação extraprocessual, a não ser em casos específicos e limitados de alguns direitos considerados indisponíveis. A atuação do MP se dava basicamente dentro do processo judicial. Foi enorme a extensão das prerrogativas alcançada pelo MP com a Constituição Federal, no que diz respeito à possibilidade de investigação visando à tutela dos direitos supraindividuais.
Antes da atual Constituição, o processo se dava para a defesa de direitos individuais. Não havia uma estruturação que proporcionasse uma defesa de interesses fluídos, de titularidade indeterminada e de direitos indivisíveis. Com a evolução social, esses direitos foram sendo instrumentalizados: num primeiro momento, os chamados direitos difusos (afetados, por exemplo, por uma publicidade enganosa, um medicamento que cause danos a toda a sociedade, uma ofensa ao meio ambiente) e mesmo os direitos coletivos (em sentido estrito), como a lesão a toda uma classe ou categoria de pessoas (como uma lesão aos integrantes de um consórcio ou ao universo de alunos de uma escola). Em seguida, os chamados direitos individuais homogêneos, que são afetados quando há lesão a várias pessoas de maneira uniforme – como acontece com os desastres aéreos (podendo-se citar como exemplo os casos de graves acidentes envolvendo aviões da TAM e da Gol). Há ainda a possibilidade de tratamento concomitante desses direitos supraindividuais lesionados por um mesmo fato, tal como aconteceu em decorrência da explosão de um shopping center em Osasco, ou no caso de uma penicilina com defeito de formulação que causou danos à saúde dos consumidores em Curitiba.
Outra novidade da nova Constituição foi a criação dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais para determinadas causas que antes mereciam o tratamento comum da Justiça, com o mesmo viés individualista. E mais: antes da CF-88, não se admitia que a Defensoria Pública entrasse com ação civil pública. Hoje, ela é também legitimada para propor esse tipo de ação.
Novos direitos coletivos foram contemplados após a Constituição Federal de 1988, por meio da lei da ação civil pública – além dos interesses relacionados ao meio ambiente, ao consumidor e a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico – como os ligados à ordem econômica, à ordem urbanística e à honra e à dignidade de grupos raciais, étnicos ou religiosos.
Verificou-se ainda o incremento de vários instrumentos jurídicos, como o mandado de segurança coletivo e o habeas data. Antes até da Ação Civil Pública, utilizava-se a figura da ação popular. Enquanto isso tudo não existia, os litígios com pluralidade de titulares só se resolvia com o chamado litisconsórcio. Uma coisa não cogitável antes da Constituição de 1988 foi a possível litigância em litisconsórcio entre os legitimados para a ação civil pública, como ocorreu, exemplificando, com os consumidores lesados pelo Consórcio Garibaldi
O que mudou na atuação do Ministério Público na área do consumidor a partir da Constituição de 1988?
A previsão constitucional de tutela do consumidor teve reflexos na atuação do MP. Por exemplo, com a criação de alguns instrumentos jurídicos como o inquérito civil, que não existia e sequer era cogitado antes da nova Constituição. Houve também a adequação das Leis Orgânicas dos Ministérios Públicos e das leis orgânicas de cada MP estadual, adaptando-se a essa exigência de tutela coletiva de direitos. Na estrutura do Ministério Público, houve a criação de órgãos específicos, como os Centros de Apoio Operacional, com o objetivo de apoiar e fixar diretrizes e políticas institucionais visando à tutela do consumidor nas demandas coletivas, características da sociedade atual.
Hoje, na chamada sociedade de risco, pelas demandas coletivizadas e pela massificação dos direitos e obrigações, há uma necessidade maior de proteção. As novas tecnologias, por exemplo, expõem o consumidor a situações antes não vislumbradas. Há uma maior facilidade de oferta e uma propaganda mais agressiva e incisiva, buscando modular a vontade do consumidor. Isso demandou a reestruturação normativa de tutela de interesses voltados a assegurar os direitos da personalidade, tais como o Marco Civil da Internet, o comércio eletrônico e as leis gerais de proteção de dados pessoais. Esse contexto de evolução tecnológica passou a exigir mais do Ministério Público.
Em que ainda é preciso avançar para a garantia de direitos na área, passados 30 anos de promulgação da CF?
É preciso haver uma melhor estruturação dos organismos de controle e de regulação, principalmente das agências nacionais, em relação aos serviços regulados. Os órgãos de controle ainda deixam a desejar em termos de atendimento às necessidades do consumidor. Seria necessário um novo direcionamento em relação ao enfoque da atuação das agências e órgãos de controle, na linha de proteção ao consumidor. Hoje, há maior vulnerabilidade dos direitos da personalidade, principalmente quanto à dignidade do consumidor. Deve-se buscar um maior equilíbrio e mais transparência nas relações de consumo. Atualmente, as agências não têm a visão de proteção ao consumidor, tão necessária para o adequado equilíbrio na relação entre fornecedor e consumidor. Isso precisa constituir política de estado, mais do que política de governo. Em situação de assoberbamento da crise, o segmento econômico que detiver maior proximidade com os agentes político-administrativos, com poder de intervenção na fixação de diretrizes, consegue vantagens em relação aos parceiros que são vulneráveis e que se situam na ponta da cadeia de consumo (os consumidores). O consumidor, como parceiro nas relações comerciais, é quem, na verdade, dá sustentáculo à economia. A política governamental adotada nos últimos tempos tem subestimado o fato de que, quanto mais forte e protegido estiver o consumidor, mais fortalecido será o consumo.
Quais os principais desafios a serem enfrentados hoje na área dos direitos do consumidor?
No que diz respeito ao Ministério Público, o maior desafio é a transformação da instituição no sentido de encontrar instrumentos que possibilitem acompanhar as demandas hipermodernas da sociedade em relação ao consumo. Na chamada pós-modernidade, temos uma sociedade hipervulnerável, com avanços significativos e de elevada velocidade, em todos os sentidos. O MP tem o grande desafio de acompanhar as atuais demandas sociais decorrentes.
As relações de consumo se tornaram mais objetivas, impessoais, ao contrário das relações subjetivadas de tempos passados. Antigamente, muitas pessoas compravam no pequeno comércio, conheciam o dono do negócio, podiam comprar a crédito apenas com a garantia da palavra empenhada, e o fiado não representava insegurança no comércio. Hoje, com a chamada sociedade de massa, as práticas se modificaram. O desequilíbrio da relação de consumo demanda maior incremento nas técnicas de tutela coletiva, em especial. A relação contratual assumiu caráter menos humanizado para assumir feição mais automatizada, paradoxalmente de maior intensidade e de menor grau de aproximação entre os protagonistas. As mídias e os aparatos tecnológicos tornaram os procedimentos mais ágeis e facilitados.
Tudo isso representa desafios de captura da tutela do consumidor no mercado, em especial por parte do Ministério Público, na sua característica de instituto voltado à defesa da dignidade social.