Constituição Federal de 1988 – nasce um novo Ministério Público

Reconhecida como um divisor de águas na história do Brasil por ter restabelecido a plena democracia, com a introdução de uma série de garantias fundamentais e direitos sociais e individuais até então inexistentes, a Constituição Federal de 1988 também alterou radicalmente a organização e a forma de funcionamento do Ministério Público brasileiro. Até então com atuação mais voltada à área criminal, a instituição transformou-se no principal órgão defensor do recém-instaurado regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis trazidos pela chamada Constituição Cidadã.

Carta de Curitiba, um marco para o MP brasileiro

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E nas discussões que resultaram no capítulo dedicado ao Ministério Público no texto constitucional, o Ministério Público do Paraná teve papel de destaque. Isso porque, reuniu em Curitiba, entre os dias 19 e 21 de junho de 1986, membros do Ministério Público brasileiro para tratar do tema durante o 1º Encontro Nacional de Procuradores-Gerais de Justiça e presidentes das Associações do Ministério Público. Na ocasião, com vistas às articulações que se iniciavam em torno da redação da futura Constituição, foi elaborado texto que pretendia desenhar um novo modelo de atuação institucional e que fosse obtido a partir de consenso entre os MPs de todo o país. Conhecido como a “Carta de Curitiba” , o documento foi resultado de discussões que ocorreram em diversos fóruns, seminários e grupos de estudos em todo o Brasil, manifestando a aspiração de promotores e procuradores de Justiça para o que deveria passar a ser o Ministério Público brasileiro. (Na foto ao lado, momento do encontro realizado em Curitiba. Ao centro, o então procurador-geral Jerônimo de Albuquerque Maranhão).

“Percebemos naquele momento que, ao contrário da frustrada Emenda Dante de Oliveira (Proposta de Emenda Constitucional 05/1983 que resultou no movimento ‘Diretas Já’ para o reestabelecimento das eleições diretas para presidente da República), a Assembleia Nacional Constituinte seria uma realidade e aquela era a nossa oportunidade de posicionar a instituição no debate nacional, o que ainda não acontecia, já que as constituições anteriores limitavam-se a falar da figura do procurador-geral de Justiça”, recorda o procurador de Justiça aposentado Luiz Celso de Medeiros, que atua na assessoria da Procuradoria-Geral de Justiça e à época integrava a diretoria da Associação Paranaense do Ministério Público (atualmente, Luiz Celso de Medeiros é vice-presidente da entidade).

Sobre a escolha de Curitiba como sede do encontro nacional que resultaria na elaboração do documento, Medeiros recorda: “Foi em reconhecimento a um grande avanço que tivemos aqui no estado em 1983, com a promulgação da Emenda Constitucional nº 16, em 29 de junho, graças ao empenho e articulação das lideranças da instituição a partir da Lei Complementar Federal nº 40/1981, que antecipava alguns dos princípios institucionais que almejávamos para o Ministério Público, como autonomia institucional, garantias aos membros do MP, independência funcional e paridade com os membros da Magistratura”.

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Os debates ocorreram a partir de documentos iniciais formulados pelas então existentes associações estaduais, bem como por cerca de 5 mil contribuições de promotores e procuradores de Justiça de todo o país que responderam questionário distribuído pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp) e que buscava ouvir a classe sobre o exercício das funções institucionais e a autonomia institucional na perspectiva do novo texto constitucional. Sobre esse período, Medeiros recorda: “Lembro quando recebi o questionário lá em Francisco Beltrão, onde atuava na época. Era uma pesquisa extensa, com muitas perguntas, que nos provocava a nos manifestar sobre qual Ministério Público gostaríamos de ter. E na época nos perguntávamos, 'será que vamos tão longe assim?'. Felizmente, a maioria acreditou que iríamos”. E assim, foi aprovado o texto que anos depois daria origem ao capítulo dedicado ao Ministério Público na Constituição Federal.

Sobre esse mesmo período, o ex-procurador-geral (1989-1990/1991-1992), atualmente procurador de Justiça aposentado, Luiz Chemim Guimarães, também comenta. “A Carta de Curitiba foi como um trampolim para todas as mudanças que teríamos logo depois e a Constituição Federal superou o que havíamos inicialmente previsto”. Chemim destaca ainda a motivação de muitos integrantes do MP brasileiro. “Tínhamos a necessidade de uma instituição que tivesse uma verdadeira consciência nacional, o que ainda não era uma realidade. Por isso a importância de uma verdadeira reconstrução de um modelo constitucional de Ministério Público”.

Na avaliação de Luiz Chemim Guimarães, que atualmente integra a diretoria da Associação Paranaense do Ministério Público (APMP), a ocasião era oportuna para a mudança no perfil institucional. “O momento era o melhor para conseguirmos conferir ao Ministério Público um perfil mais robusto, que assegurasse à instituição um papel de efetivo defensor das liberdades e garantias individuais que estavam sendo asseguradas na Carta Magna que estava em elaboração”.

 

Participação na Constituinte

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Uma vez aprovada a Carta de Curitiba, os promotores de Justiça paranaenses passaram a dedicar-se ao debate em esfera nacional em torno do novo texto constitucional. O ex-procurador-geral Milton Riquelme (2004-2006/2006-2008), lembra do período quando, acompanhado de outros colegas, assumiu a diretoria da APMP. “No dia seguinte à nossa posse na Associação, fomos convocados pela Conamp para participarmos de uma reunião em Brasília. A partir dali, nos juntamos ao grupo que estava à frente das discussões sobre a nova constituição e nos determinamos a ter uma participação ativa naquele processo. Até porque, como a origem do que buscávamos com a constituição era o que estava previsto na Carta de Curitiba, víamos aquela participação como uma obrigação nossa, do estado do Paraná, em dar todo o apoio e nossos melhores esforços”, lembra Riquelme.

 

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O ex-procurador-geral de Justiça Olympio de Sá Sotto Maior Neto (1994-1996/1996-1998 e 2008-2010/2010-2012), atualmente coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos Humanos, destaca a principal motivação: “Buscávamos garantir, constitucionalmente, o caráter do Ministério Público como instituição defensora do regime democrático, atribuição que deve ser bastante valorizada porque, na prática, significa a possibilidade de uma intervenção positiva do Ministério Público para a transformação social e de construção de uma sociedade mais justa. Essa previsão, aliás, constava na proposta da Lei Complementar nº 40/1981, mas acabou não sendo acolhida”, resume, em referência à legislação anterior à Constituição que se limitava a estabelecer regras gerais de organização do Ministério Público estadual.

 

Articulação em Brasília – Nos debates em torno do novo texto, a atuação dos promotores envolvia uma articulação permanente junto aos parlamentares constituintes. “Naquele momento, o Ministério Público do Paraná, juntamente, com os MPs de São Paulo, Rio Grande do Sul e Minas Gerais, teve grande protagonismo nas articulações em Brasília”, recorda Medeiros. Entre os representantes da classe política, os paranaenses que tiveram atuação mais destacada e próxima dos membros do Ministério Público foram os constituintes Euclides Scalco (deputado federal) e José Richa (senador da República)..

Antecedendo essa fase, as interlocuções ocorriam, principalmente, em torno da Comissão Provisória de Estudos Constitucionais, idealizada por Tancredo Neves e convocada pelo então presidente José Sarney, sendo composta por juristas e estudiosos de várias áreas para trabalharem na elaboração de um anteprojeto para o texto constitucional. Conhecida como “Comissão dos Notáveis”, presidida pelo jurista e humanista Afonso Arinos de Mello Franco, tinha entre seus integrantes o então procurador-geral da República, José Paulo Sepúlveda Pertence, e o promotor de Justiça paranaense Fajardo Pereira Faria.

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Luiz Celso de Medeiros também destaca a preocupação que havia entre os constituintes de que as discussões sobre o novo texto contassem com ampla participação social. “O então candidato à Presidência da República, Tancredo Neves, ao discursar no Colégio Eleitoral, em 1985, sobre a necessidade de uma nova Constituição para o país, manifestava a ‘preocupação de que ela não surja no açodamento, mas resulte de uma profunda reflexão’ e que fosse resultado de um ‘pacto político fundamental’, definida por uma Assembleia Nacional Constituinte, correspondendo a ‘amplo consenso da generalidade dos setores que compõem a sociedade civil’”, lembra. (Na foto ao lado, Luiz Celso de Medeiros ao final da segunda votação da Assembleia Nacional Constituinte. Ao fundo, à esquerda, vê-se o presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Ulysses Guimarães).

Até que fosse alcançado o consenso entre os diversos grupos existentes, muitos eram os pontos divergentes e foi preciso muita articulação até a redação final. “Quando seria votado a parte do texto que trata do Ministério Público, por exemplo, tínhamos convencido o Doutor Ulysses, como o chamávamos (Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Nacional Constituinte), para que votasse ele todo de uma só vez, e não fracionado, diminuindo o risco de serem feitas alterações que não desejávamos. 

Nesse processo, alguns pontos que eram caros aos promotores de Justiça acabaram não sendo contemplados no texto final. No entanto, muitas e maiores foram as conquistas obtidas. “A garantia constitucional quanto à ação penal pública ser de proposição privativa do Ministério Público, a possibilidade de realização de diligências investigativas por parte da instituição, o controle externo da atividade policial, a ação direta de inconstitucionalidade, a atuação para a defesa dos povos indígenas, a vigilância quanto à probidade administrativa e a utilização da ação civil pública para a defesa dos interesses difusos e coletivos nas mais diversas áreas são, sem dúvida, grandes vitórias que tivemos. Hoje não é possível falar em democracia sem passar pelo Ministério Público e, naquele período de transição democrática, isso era uma responsabilidade enorme”, sintetiza Chemim.

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A mesma avaliação é feita pelo procurador de Justiça e ex-procurador-geral do MPPR, Gilberto Giacoia (1998-2000/2012-2014/2014-2016): “Ao traçar esse novo perfil, o legislador constitucional quis destinar ao Ministério Público, dentre outras, as mais relevantes incumbências da vida pública, representadas pelo binômio defesa da ordem jurídica e do regime democrático”. Tal mudança pela qual passou a instituição é também valorizada por Giacoia. “A partir de 1988, o Ministério Público passa a ser o defensor direto de macro valores sociais concentradamente, pois, na área criminal prossegue na titularidade exclusiva da ação penal pública, mas, no campo extrapenal, assume o papel de agente político de transformação social com atuação decorrente de legitimação mais alargada, por seu novo modelo constitucional, na tutela dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Garante, portanto, a proteção qualificada da sociedade, detém poderes de investigação e de ajuizamento de ações em decorrência de atos que atentem contra a moralidade e a probidade administrativa, relacionadas ao patrimônio público, ao patrimônio ambiental, cultural e ético, velando pelos direitos da população infantojuvenil e demais segmentos sociais mais vulneráveis”.

Giacoia destaca ainda o perfil de proximidade com a sociedade que a Constituição imprimiu à instituição. “O legislador constitucional reconhece que a sociedade precisa de uma instituição que defenda as garantias que o pacto social brasileiro lhe assegurou e entrega ao Ministério Público as ferramentas necessárias para isso. O MP é a instituição de Estado que está mais próxima da população e que promove o equilíbrio e a conexão entre a sociedade civil e a estatal, reduzindo a dicotomia sociedade civil-sociedade política”, resume.

Olympio de Sá Sotto Maior Neto também pontua que, embora o Ministério Público já tivesse destaque como defensor da sociedade, tal referência estava muito relacionada à área criminal, tendo sido efetivamente ampliada para os demais setores a partir da Constituição de 88. “E, para a realidade brasileira, é extremamente significativo que possamos, principalmente com ações relacionadas a interesses coletivos buscar materializar as promessas de cidadania já contempladas no nosso ordenamento jurídico, especialmente na Constituição de 1988, não por acaso denominada Constituição Cidadã”.

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O compromisso com o fortalecimento do exercício da cidadania é um aspecto também destacado pelo procurador de Justiça Mauro Sérgio Rocha, coordenador do Núcleo de Controle de Constitucionalidade da Procuradoria-Geral de Justiça. “A partir do momento em que essa Constituição dialoga com a moral e estabelece um rol significativo de direitos fundamentais, determinando que o Ministério Público faça gradativamente a sua implementação, ela cria um espaço de luta para que possamos, necessariamente, implementar os direitos elementares da cidadania. Com isso, a Constituição de 1988 estabelece um novo paradigma para que possamos fazer com que homens e mulheres trilhem os elementares passos da cidadania”, resumiu.

 

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Luiz Celso de Medeiros recorda ainda que as conquistas obtidas pela instituição foram tão expressivas que chegaram a surpreender, inclusive, muitos dos que acompanhavam as discussões. “Tamanho foi o avanço em relação ao Ministério Público que a muitos causou perplexidade, como ao professor Manoel Gonçalves Ferreira Filho, então titular de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da USP, que chegou a afirmar na época que ‘o anteprojeto valoriza extraordinariamente o Ministério Público. Separa-o do poder Executivo e o faz constituir um verdadeiro quarto poder, um poder fiscalizador’”, lembra.

O protagonismo conferido à atuação institucional após 1988 é também ressaltado por Mauro Sérgio Rocha: “Ao incumbir o Ministério Público da proteção da ordem jurídica e do regime democrático, o texto constitucional elege a instituição como o protetor do estado democrático de direito, que é o pilar central dessa Constituição. Portanto, o MP, como instituição permanente, está no DNA da Consituição Federal”.

 

Funcionamento interno

O próprio funcionamento da instituição sofreu muitas alterações a partir do novo texto que garantiu autonomia funcional e administrativa, passando a ser do chefe do MP a prerrogativa para diversas funções antes exercidas pelo chefe do Poder Executivo, como a proposta de criação e a extinção de cargos, por exemplo.

O procurador de Justiça Olympio de Sá Sotto Maior Neto, à época promotor de Justiça, lembra desse período quando o então procurador-geral de Justiça do MPPR, Jerônimo de Albuquerque Maranhão, passou a colocar em prática as previsões constitucionais. “Após comunicar o governador do Paraná, ele pautou em reunião do Conselho Superior a definição de remoções e promoções de promotores de Justiça, antes definidas exclusivamente pelo Executivo. Com isso, foi destituído do cargo de procurador-geral, mas consistiu em uma postura que deu concretude ao princípio da autonomia administrativa e elevou em dignidade o Ministério Público do Estado do Paraná”, destacou.

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Outra passagem desse período é lembrada por Luiz Chemim Guimarães quando, em 1989, com a saída de Jerônimo de Albuquerque Maranhão, foi nomeado procurador-geral de Justiça. “Mas como a Constituição já definia que a escolha do procurador-geral de Justiça deveria ocorrer por meio de lista tríplice entre os integrantes da carreira, não estava confortável naquela posição e em seguida convoquei eleições, tendo sido eleito”. Chemim foi, portanto, o último titular do MPPR nomeado pelo Executivo e o primeiro a ser eleito pelos membros. “Após a eleição, com a legitimidade constitucional, passei a trabalhar na implantação da Carta Magna na realidade do Ministério Público do Paraná, enfrentando as várias resistências que encontrávamos, seja com o governo do Estado, com o poder Legislativo ou com outros órgãos. Hoje a instituição está consagrada, assim como a Constituição Federal”, comemora.

A autonomia financeira do Ministério Público, outra garantia constitucional, foi outra conquista que passou a ser efetivada anos após a aprovação da Constituição Cidadão. A respeito disso, Olympio de Sá Sotto Maior Neto recorda: “Quando assumi a Procuradoria-Geral de Justiça em 1994, foi o primeiro tema que busquei enfrentar e somente fomos obtê-la em 1996, alcançando a definição, na Lei de Diretrizes Orçamentárias do Estado, de um percentual orçamentário próprio para o Ministério Público, com idêntico tratamento aos demais poderes”.

 

Referência internacional

As previsões de atuação institucional inauguradas com a Constituição Federal de 1988 representaram um salto tão expressivo que o seu texto passou a ser considerado referência, inclusive internacional. “Sentíamos falta, naquela época, de instrumentos que nos permitissem fazer o que desejávamos, que era transformar a realidade social e hoje, presenciamos o alcance do trabalho ministerial, inclusive com grandes operações alcançando o poder público, o que era inimaginável”, pondera Milton Riquelme que também destaca as características únicas do texto brasileiro. “No mundo, a nossa previsão constitucional é inigualável. Não há MP de nenhum outro país com essa formatação legal, constitucional, como o nosso”.

A mesma opinião é compartilhada por Olympio de Sá Sotto Maior Neto. “Essa possibilidade de atuação que nos permite fiscalizar o próprio Estado, de forma a assegurar que as garantias constitucionais sejam efetivamente cumpridas, confere ao Ministério Público brasileiro uma característica única, totalmente diferenciada dos demais países, sendo a nossa legislação uma referência internacional, principalmente no que se refere a proteção aos direitos humanos”, concluiu.